sábado, 5 de novembro de 2011

A Resistência de Juscelino



Conheci várias personalidades cuja acuidade mental me assombraram. Entre elas, o cel. João Alberto, que foi interventor em São Paulo e que, ao meio da pergunta dava a resposta; Jânio Quadros que, discursando, por simples contração facial de um assistente, modificava a argumentação; o presidente Juscelino Kubitschek, cuja agudeza de espírito é inegável. Mas não era o orador nato, não era a obstinação de realizar o quase impossível nem era o populismo inato de Juscelino o que, nele, mais me pasmava senão sua resistência.
De uma vez, vi-me vice-líder, na liderança da bancada, pois o líder viajara e, nessa posição, recebi, do Palácio, convite para acompanhar o governador de Minas a Ouro Preto, numa das comemorações a Tiradentes. Avesso às comitivas oficiais, fui forçado a enfrentar o imprevisto.
O único consolo fora ouvir o orador oficial, Pedro Calmon, substituto, entre nós, da eloquência de Rui.
Marcada a saída para as cinco horas, o recurso foi levantar-me às quatro. Na gares começou o atraso. Não havia chegado o senador Meio Viana; faltava o Des. Nizio Batista, presidente do Tribunal, e outros... Eram quase sete, quando o comboio se movimentou. Em cada estação, uma professora, os alunos e o discursinho de praxe. Juscelino respondia radiante. Para encurtar: só às 14 horas, chegamos à antiga Capital de Minas, cheios de discursos, foguetes e bandas de música. Houve, afinal, a comemoração, a coroa de flores na estátua do Mártir, a oração inesquecível de Calmon, e outras, e outras.
Às quatro da tarde, ou dezesseis horas, como se diz hoje, fomos almoçar, com o estômago cheio de palavras e de protestos. E recomeçaram as parlengas, só terminadas às vinte horas, com as palavras de Juscelino. Na volta, em Itabirito, o José Augusto estava firme, com banda de música e povo, para o discurso quilométrico.
Sintetizando, retornamos a Belo Horizonte às duas da madrugada, moídos, esfacelados, esfrangalhados.
Ao atingir o Hotel e abrir a porta, qual não foi nossa surpresa ao encontrar, posto por baixo da porta, um bilhete do Palácio: “O Governador convida-o para acompanhá-lo a Pouso Alegre, hoje, às cinco horas”.
Lembrei-me de que, no quarto ao lado, estava o representante de Guaxupé. Sem mais aquela, esmurrei a porta e lhe entreguei o bilhete:
Você é da região e o Governador o intima para acompanhá-lo. E fui dormir.
Dois dias após, encontrei o Dr. José Felipe, de Guaxupé; e ele foi contando:
Saímos às 5 da manhã e descemos do avião, num campo longe da cidade. Houve foguetes, música e discursos. O governador ia a pé, cumprimentando a todos. Inauguração da escola e discursos. Ida, a pé, a uma ponte afastada dois quilômetros, para inaugurá-la. Discursos ao sol ardente. Outra inauguração no mesmo estilo. Em fim, o banquete. Discursos. Depois, o comício na praça pública. Um dos oradores falou hora e meia. Já noite, terminou a festa. Terminou? Nada. Juscelino começou a receber as embaixadas municipais. Quando a última, de Caxambu, saiu, eram três horas da madrugada. O governador exclamou:
Estou com sede. Não encontraríamos uma água mineral?
Olhei, da janela, a praça. Do outro lado, um bar, com as cadeiras sobre as mesas. “Existe um bar, informei, a fechar-se”.
Atravessamos a praça. O proprietário, reconhecendo o governador, desmanchou-se em amabilidades. E Juscelino, surpreendente:
Dizem que meu apelido é “Pé de Valsa”. Gosto de dança. Que bom seria se tivéssemos um baile agora.
E o Dr. José Felipe, amargurado:
Nunca mais acompanho Juscelino. Depois de dois dias de atividade febril, alta madrugada, o homem pensava em dançar...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Exagerado



Com a decadência da aristocracia rural, no começo do século, rompeu-se a estrutura colonialista do país. Agravaram a situação, a crise e o posterior desaparecimento da lavoura de café, na Zona da Mata. Em conseqüência, muitas famílias de tradição e alto conceito se viram, a pouco e pouco, reduzidas econômicamente. Entre elas, em nosso meio, a do velho Jacinto de Moura. Meu escritório, há quatro décadas, foi muito frequentado por seus filhos, que conservaram a impressão do poderio antigo. O tenente Belmiro chegou a figura popular no fim da vida. O Hórácio sonhava reconquistar a “Fazenda Brasileira”, perdida para o Cel. Fidelis numa ação executiva. Entanto, o mais “crente” deles era o Antônio Jacinto de Moura, de imaginação fértil, que a si se atribuía uma importância digna de admiração.
Certa vez, procurou o nosso escritório para contar sua fortuna (até me lembro de uma República de estudantes de Ouro Preto — os Milionários da Miséria), pondo-me ao par de aventuras insólitas.
A certa altura, perguntou-me:
— Sabe que fui eu quem inventou o arranha-céu?
— Não diga. Como?
— Numa ocasião, conta o Antônio Jacinto, resolvi mudar-me para São Paulo. Lá chegando, com pouco dinheiro, decidi morar no jardim. Como havia quatro palmeiras novas, duas a duas, furei-as e estendi paus paralelos, coloquei tábuas, fazendo um estrado. Fiz a coberta e a casa estava pronta. Ali dormi poucas noites. Notei que a casa ia subindo. Fiz outro estrado abaixo daquele. Mas as palmeiras cresciam à noite e, de manhã, já era difícil descer. Precisava fazer outro estrado mais baixo. Daí a tempos olhava-se da praça e se via um rol de casas emendadas... Um morador vizinho achou a ideia interessante e mandou fazer um punhado de casas, umas sobre as outras. Desta maneira, nasceu o arranha-céu...
— E como você voltou de São Paulo, Antônio?
Essa é que foi a melhor. O dinheiro acabou. Não podia voltar. Comecei a andar pelas ruas, quando li, numa porta: “Delegacia de Polícia”. Veio-me uma ideia salvadora. Entrei. Pedi para falar, com urgência, ao Delegado. Atendeu-me com curiosidade. Então contei-lhe que era de Minas, da cidade de Ubá, tenente da Guarda Nacional. Mas havia praticado um crime de morte e fugido para São Paulo. Fiquei arrependido, com muito remorso e resolvi entregar-me à polícia.
O Delegado tomou nota, ditou o depoimento e disse que estava eu preso e que me mandaria remeter para Belo Horizonte, com um ofício. Na realidade, mandou dois soldados me levarem e me entregarem na Casa de Correção. Quando eles saíram, chamei o guarda e lhe disse que precisava falar com o Raul Soares, que era o Presidente do Estado e meu primo. O guarda deu uma formidável gargalhada.
E depois, perguntei?
Fiz um escarcéu na prisão, reclamei em altos brados, clamando que precisava dar explicações ao governador. Chamaram o Diretor do Presídio. Provei que era de Ubá e o Diretor me levou ao telefone. O Oficial de Gabinete atendeu, mas não queria chamar o Presidente. Mas diante de minha insistência, o Raul foi ao fone. E eu contei o meu aperto e o ardil para voltar a Minas. O Raul mandou o Secretário me levar um passe para Ubá e mais 5$000 para as despesas, dizendo:
Esse parente é um doido, é um doido... 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Maestro Ubaense




    Foi, sem contestação, Ari Barroso. A princípio, nome nacional; depois, internacional, vulgarizando, no mundo da música, o nome do Brasil. Tenho, em minha frente, o trabalho, em três volumes, contendo a biografia do grande maestro, que a paciência beneditina de Dalila Luciana redigiu. É a mais extensa que conheço em nosso país, pois o “Estadista do Império”, de Nabuco, e o “Estadista da República”, de Afonso Arinos, são mais estudos da época do que simples monografias pessoais. São 1.168 páginas dedicadas ao nosso imenso conterrâneo, acervo imorredouro de fatos, dados e fotografias. Longe de ser completo, Ari Barroso era inesgotável, é a maior contribuição que se pode desejar a um ídolo perene.
    Quando entrei para o Ginásio Ubaense, iniciando o curso secundário, o maestro de nosso cinema havia passado no vestibular da Faculdade de Direito e retornara à terra. O Diretor, professor Lívio Carneiro, convidara-o para nos dar aulas, junto com outro acadêmico, Aristófanes Amorim, aproveitando os valores novos da terra. Ari pouco se demorou no magistério, pois o Nadir Aroeira pregou-lhe uma cauda de papagaio, além de colocar carrapichos na cadeira do mestre, o que resultou na prisão da classe, com a suspensão das aulas. Corria o ano de 1921. O fato levou-me à transferência para o Ginásio São José, de onde tinha sido expulso o maestro, como expulso foi, mais ou menos, de todos os colégios da região. Já era o turbilhão, de que fala a autora.
    Anos depois, em 1927, tornei-me colega do maestro xará, na Faculdade de Direito. De quando em vez, voltava ele à terra natal e nos encontrávamos com abundância de afeição e simpatia mútua.
    A verdade é que seu conceito, na cidadezinha, não era alto, pois as famílias e a moral da época não compreendiam que um moço acadêmico pudesse levar a boêmia àquele extremo de ser carregado, às costas dos companheiros, alta madrugada, para a casa de dona Ritinha. Os excessos do artista o prejudicavam no meio acanhado.
    Certa vez, na Faculdade, Ari Barroso descobriu que seu primo Célio Rezende Teixeira (hoje, o desembargador) ia prestar exame vestibular. Sem mais aquela, pegou-o pela gola do paletó, exclamando:
     Célio, você vai prestar exame para mim, no terceiro ano. Tenho compromisso de tocar no Belas Artes e não posso perder 200$000.
    Você está doido, Ari!
    Mas Ari foi empurrando-o, deixando-o, basbaque, na sala de provas, de pé, a nosso lado. Medindo o ambiente, de todo desconhecido, Célio firmou-se nos calcanhares e saltou para trás, caindo no corredor e, em disparada, ganhou a Rua do Catete, descendo-a em desabalada corrida, enquanto Ari, atrás, gritava:
    Venha cá, Célio! Venha cá!
    Ari, o gigante. Naquele tempo, como enloqueceu o Rio com o “Dá Nela”! Os brasileiros, que corriam o mundo, em todos os países, ouviam as suas composições musicais. Único brasileiro que ganhou o “Oscar” dos Estados Unidos. Ordem Nacional do Mérito. Grande na televisão, no teatro, no jornalismo. Maior em nosso Flamengo. Nossa amizade, grande no correr da vida, foi anuviada, em 1962, por um pedido dele, que não pude atender, mercê da palavra anteriormente empenhada. Ele se agastou e me escreveu uma carta magoada, dizendo que nunca mais voltaria a Ubá. Ou se voltasse, seria a horas mortas, para não encontrar ninguém... Pior é que publicou a carta na “Tribuna da Imprensa”. Mas seu coração era grande demais, Voltou à terra pouco depois, mais alegre e maior, o mesmo de sempre. Vou ler o livro...

sábado, 1 de outubro de 2011

Peixoto Pitoresco


Peixoto Pitoresco
No ano do centenário de nascimento de Carlos Peixoto Filho, que ora transcorre, realizaram-se, aqui, algumas comemorações e escreveram-se alguns trabalhos, cujo ponto alto foi a conferência do professor Gastão de Almeida. Nada, porém, acerca de sua infância e primeiros estudos, em Ubá. Nada sobre o ensino secundário, no famoso “Ateneu Mineiro”, de Juiz de Fora, do consagrado mestre Santos Valente, que o considerou “aluno modelo”. E tão incomum, que, aos 13 anos, concluía o ciclo de preparatórios, sendo necessária uma licença especial do Ministro da Justiça para que, em 1885, se matriculasse na Faculdade de Direito de São Paulo. Nada sobre o seu curso superior quando pregava, nos discursos de rua, a Abolição e a República, contrariando as convicções e os interesses de seus parentes nesta terra. E contrista, e confrange, e aflige constatar que nada, mas nada mesmo, se disse a propósito do início da vida pública do genial conterrâneo, na política municipal, quando Prefeito (então se dizia Agente Executivo Municipal) em 1896, 1897 e 1898 (o mandato era então de três anos). Que administração fecunda e que cultura a serviço de sua terra! Eu me enleio e me deslumbro ainda hoje, quando recorro ao Estatuto Municipal, ou “Leis Orgânicas do Município de Ubá”, que ele, na época, redigiu para esta comuna, quer pela perfeição da forma, quer pela sabedoria da essência, padrão legislativo para centenas de municípios do Estado e do país, e que nos serviu de roteiro, quando, em 1937, redigimos os novos Estatutos Municipais de Ubá. Claro que a ninguém acusamos de tais lacunas, que elas cabem a todos nós, ubaenses.
Hoje, o que nos interessa é a face, digamos negativa, de Peixoto Filho, para provar que os gênios têm também suas descaídas. Será o seu lado humano.
Jamais compreendi a crendice de Carlos Peixoto, sua submissão às cartomantes. Quem melhor a definiu foi o grande historiador Manoel Bonfim, em palestra com Humberto de Campos:
    “— Carlos Peixoto era um tipo curioso. Inteligente, culto, e, no entanto, supersticioso. Era como o Alcindo e o Lauro Müller.
    E numa indiscrição:
Não havia, no Rio, certamente, pitonisa ou feiticeira, cujas portas não fossem transpostas pelo Lauro, pelo Alcindo e pelo Peixoto!”
    Felizmente o notável conhecedor de nossa história ficou apenas na citação de três nomes, pois a fauna é bem mais abundante, na vida pública brasileira...
    Essa outra foi contada ao mesmo Humberto de Campos por Manoel Vilaboim, no tempo líder da bancada paulista na Câmara Federal:
    “Peixoto possuía um “diário”, de que os seus íntimos tinham vaga notícia. Após o seu falecimento, Prudente de Morais Filho, o Prudentinho das rodas políticas, teve a ideia de publicar o “Diário” do companheiro desaparecido. Correu à casa do velho pai do ex-Presidente da Câmara, insistindo para ver o livro de reminiscências do amigo. Em virtude da insistência, entregam-lho. Prudente abre, e lê, certo, em uma página:
    — “Esteve, hoje, em minha casa o Prudentinho... Que besta!”
    Prudente de Morais Filho fechou o livro e entregou-o à família de Carlos Peixoto. E nunca mais falou na publicação do “Diário” do amigo morto.. .“
     Também sem desacertos, os seres humanos não seriam homens, mas puramente deuses...

domingo, 25 de setembro de 2011

O Feijão


O Feijão
         Como todas as Ditaduras, a de Getúlio Vargas caracterizou-se pelo controle absoluto, pela absorção total das liberdades públicas. Desceu a intervir nos atos, atitudes e palavras individuais, através de uma hierarquia em que os régulos se refestelavam, sem que o regime de exceção permitisse reação ao povo. Os maiores crimes e os mais escandalosos assaltos se praticaram sem apelo, O “câmbio negro” se institucionalizou.
Foi nessa época negra que se deu o episódio do “feijão”. A Ditadura entrava casa a dentro e fiscalizava o que se punha nas panelas.
O Dr. José Januário Carneiro era um eminente professor da Escola de Minas de Ouro Preto e, à proclamação da República, fôra nomeado Membro da Intendência da velha Capital do Estado, em virtude de seu próprio espírito público. Resolveu o problema da água e esgoto da comuna. Como mantinha lá o afamado Colégio Mineiro, resolveu fundar, nesta terra de seus ancestrais e em sua própria Fazenda da Boa Esperança, em 1905, o Ginásio São José. A ele deve a região, o Estado e o próprio país um tributo inestimável como grande benfeitor, num tempo em que o ensino era privilégio de poucos. Pois o Dr. Fecas foi intimado, pelo Inspetor Federal, a suprimir o feijão no jantar dos alunos. O sistema era de internato e, como não havia estabelecimentos de ensino secundário próximos, os estudantes vinham das cidades vizinhas e, às vezes, de longes paragens, através de navios e estradas de ferro.
Tentando cumprir a ordem oficial, o Dr. Fecas esbarrou com a greve dos alunos: recusaram eles o jantar sem o prato costumeiro. Analisando as razões oferecidas pelos internos e atendendo a que o feijão era considerado um prato básico, alimento rico em proteína, substituto da carne no meio rural, deu razão aos estudantes e resolveu interpor um recurso para o Ministério da Educação. Justificou com o hábito inveterado da localidade, com o valor alimentício do produto, com a intervenção injustificável. O processo foi ao Consultor Jurídico do Ministério, que, após minucioso e douto estudo de leis discricionárias, opinou pela proibição oficial, resultando a denegação do recurso. Intimado da decisão, o Diretor do Ginásio não se deu por vencido. Julgava uma interferência indébita em sua cozinha. Recorreu do despacho do Ministro para o Conselho Superior da Educação. E homens eminentes puseram-se a estudar profundamente o delicado problema dos alunos do Ginásio ubaense. O professor Reinaldo Porchat, então Reitor da Universidade de São Paulo, encheu páginas. O Pe. Leonel Franca, filósofo de alto gabarito, deitou larga falação sobre o malsinado alimento servido no jantar dos estudantes. Seus votos ocuparam folhas do “Diário Oficial” da União. Naturalmente se pesquisaram os regimes alimentares dos sumerianos e egípcios, os cardápios dos gregos e os festins dos romanos, os banquetes dos castelões medievais e dos pobres oficiais das corporações, a abundância do Renascimento e a fome que fez explodir a Revolução Francesa. Para concluir, no entretanto, que os alunos do Dr. Fecas não podiam jantar feijão.
Notificado do veredicto do Supremo Conselho, num inconformismo que ralava pela convicção de cavaleiro andante, o Dr. José Januário Carneiro decidiu ir à autoridade máxima, S. Exa. o absoluto presidente da República, ditador Vargas, a quem encaminhou o último apelo.
Passaram-se dias de tranquilidade e feijão. Os alunos, satisfeitos, nem mais se lembraram do fato pitoresco. Eis senão quando, sem mais embargos, explode a bomba de efeito retardado. A última palavra se pronunciou: “Suprima-se o feijão”. A máquina enorme se movimentara, abalaram-se ministérios e jurisconsultos, mas a Ditadura, entrando pela porta da sala, atravessara toda a casa e atingira a cozinha, mandando esvaziar a panela de feijão...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Teodoro Sampaio


Teodoro Sampaio

Os jornais do tempo anunciaram um discurso de João Neves da Fontoura na Câmara Federal. Era o orador mais fogoso, quase incendiário, da Aliança Liberal. Deliberamos (eu e o José Campos, este depois professor de Direito e Presidente do Tribunal de Justiça de Goiás) ouvi-lo e subimos às “torrinhas” do Palácio Tiradentes. O afluxo era enorme. Mal nos debruçamos no parapeito, divisei um preto gordo, beiçudo, de pesadas roupas escuras e cabelos grisalhos, flanando entre os deputados e com eles convivendo.
— Deve ser, disse ao Campos, algum contínuo muito antigo e familiar aos representantes do povo.
Mas o pretão assentou-se. E, para maior surpresa minha, os deputados o cercaram e lhe ouviam com atenção. Não me contive:
— Que contínuo atrevido, Campos, assentado, enquanto os deputados estão de pé.
— Não conhece aquele? — perguntou-me um desconhecido que estava ao nosso lado. É o sábio Teodoro Sampaio.
E ante o meu espanto:
— A cidade de São Paulo, ao surgir a República, era uma comuna pequena e suja, de 80.000 habitantes. Teodoro Sanipaio, como grande engenheiro, foi nomeado prefeito. Fez novo traçado, abriu ruas e bairros, aumentou, em progressão geométrica, a luz e a água. Criou parques industriais. Realizou uma revolução na capital paulista. O Rio tem 2.500.000 habitantes. Pois São Paulo já tem quase 2.000.000. E se o Rio, apesar de Capital do Brasil, não abrir os olhos, São Paulo acabará igualando-o... A velocidade inicial continua em crescendo ininterrupto.
Olhei, de novo, o crioulão, entre seus pares, já com respeito e assombro, enquanto o vizinho teimava em acrescentar pormenores, detalhes novos em que mostrava seu profundo conhecimento dos representantes federais:
- É ele deputado pela Bahia, terra quase só de pretos. Um dos pontos altos, de sua representação. Profundo conhecedor da etnografia indígena e da língua tupi é dos maiores sabedores da arqueologia brasileira. Percorreu o país todo, estudando jazidas paleontológicas e inscrições rupestres.
Os elogios do gentil informante me obrigavam a fitar e gravar no cerebro figura tão desconcertante. Físico semelhante só encontrei mais tarde em pessoa tristemente famosa, o Gregorio do “mar de lama” do Getulio. Na ocasião, todavia, me lembrei de Luiz Gama, também grosso e rotundo, o heróico abolicionista das tribunas de júri, autor das “Trovas Burlescas” e de André Rebouças, o grande matemático, célebre engenheiro e dedicado servidor de Pedro II.
A sessão da Câmara perdeu o interesse para mim. Os discursos de Adolfo Bergamini de Maurício de Lacerda, de Augusto de Lima, do velho e barbado José Bonifácio e do próprio João Neves, não tiveram a mesma importância e significado para mim que aquele conhecimento, só de todo compreendido mais tarde, quando li obras do sábio Teodoro Sampaio. E aquela profecia do gentil incógnito a propósito do crescimento de São Paulo se cumpriu integralmente, com exagero e até com desregramento.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Sessão da Academia


A Sessão da Academia
A Academia Brasileira de Letras, sem embargo da pecha de reacionarismo que lhe movem os despeitados, é o mais alto cenáculo literário do país, a máxima aspiração de nossos intelectuais. Fugindo a uma aula, tipo “chata”, do Conde Cândido Mendes, resolvi assistir a uma sessão na Casa de Machado de Assis, Estava no prédio novo o Silogeu Brasileiro, oferecido ao insigne sodalício pela França, frente ao qual a estátua do fundador mostrava a austeridade do ambiente.
Entrei ali como num Templo. E enquanto Humberto de Campos lia a ata e o Barão de Ramiz Galvão procedia à leitura do “Relatório Anual”, cheio de frases feitas e em estilo demodè, estudava o meio e a fisionomia dos “imortais”. O Conde de Afonso Celso pronunciou uma oração no costumeiro sistema anedótico, tal qual as aulas que servia aos alunos da Faculdade.
Achei admirável, na verdadeira tonalidade acadêmica, o belo discurso pronunciado por Félix Pacheco, ex-Ministro das Relações Exteriores do Governo Bernardes e respeitado diretor do “Jornal do Comércio”.
A imponência de Alberto de Oliveira, então “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, a sua natural majestade, o aprumo e a longa cabeleira, não revelavam, de todo, seu inevitável desgaste físico. Falou do desenvolvimento da memória e contou que, nos fins do século passado, os literatos resolveram formar um clube na roça, perto de Niterói, para cultivar a retenção de fatos e coisas. Paula Ney e Guimarães Passos sobressaíram logo na arte de reter. A princípio, cada um recitava uma quadra. Depois, um soneto. Mais tarde, grandes trechos. E cada qual, nas declamações, se esforçava por testemunhar o progresso do método. Mas a maior surpresa que sentiu, ele, Alberto de Oliveira, foi quando, numa das sessões semanais, escreveu, de manhã, um soneto, decorou-o e o recitou para os sócios de Niterói. Mal acabou de declamar, Olavo Bilac acusou-o de plagiador, pois conhecia aquele soneto há muitos anos e até tinha o hábito de recitá-lo na infância. E repetiu, para a assistência ilustre, a poesia malfadada. As discussões se exasperaram. E só no fim do alarido, de ataques e defesas, Olavo Bilac confessou que bastava ouvir uma vez o recitativo para reproduzi-lo. E com o fato, o Clube se desfez...
Em verdade, quem mais me empolgou foi Coelho Neto. Orador mavioso e sedutor. Apesar de ter cento e tantas obras publicadas, de colaborar, semanalmente, no “Jornal do Brasil”, de ser considerado o estilista portentoso, ficou-me a imagem do palrador genial. Sua mímica era prodigiosa. As mãos falavam. Acompanhavam os gestos. Lembrou ele sua mocidade com Castro Alves, nas mesas de bar de São Paulo, escrevendo poesias aos eflúvios do liquido espumante. As noitadas de orgia dos moços da época. E suas mãos cortavam o ar, num arabesco evocativo, desenhavam figuras, subiam e desciam, rápidas como o pensamento, ou lentas como a emoção. A assistência se deleitava. Mas depois ocupou a tribuna um visitante português, Afonso Lopes Vieira, escritor de fama no tempo, em visita ao Brasil, numa linguagem sincopada, puxada nos rr, vocábulos cavalgando vocábulos, como um carro de rodas quadradas, na desarmonia do linguajar tipicamente minhoto...

sábado, 27 de agosto de 2011

Daniel de Carvalho



Ainda encontrei o velho GRANDE HOTEL, de Belo Horizonte, onde residi dois anos, com o fascínio e a moldura dos tempos antigos. Era a Meca dos conhecidos chefes municipais, dos “donos” da terra, expressões de valor intelectual ou de prestígio político. Representava meio século de segredos e decisões na vida estadual. Fazia eu refeições na mesa de Daniel de Carvalho, sempre que ele estava na Capital mineira. Conversador amável e invejável, palavra fácil e ornamentada, bem informado a respeito de tudo, tornava-se um deleite ouvi-lo. A qualquer lugar, a qualquer cidade da Terra a que nos referíssemos, da Pérsia à Inglaterra ou à Índia, lá possuía ele uns amigos, tinha um caso especial a contar. Conhecia o mundo de ponta a ponta. Cultura vastíssima, não só jurídica como literária, professor eminente, revelava-se o espírito curioso de toda ciência nova e, sobretudo, um especialista em matéria de finanças.

Determinado dia, resolvi provocá-lo de frente. Por que, sendo Ministro da Agricultura no Governo Dutra, não tentara ocupar a Amazônia? Afinal, as ideias de Tavares Bastos sobre o extremo norte estavam com um atraso de cem anos. O presidente Bernardes sustentava — e mo afirmara várias vezes, que a Clevelândia (Amapá) seria o celeiro do Brasil futuro. Por isso, exilara os presos politicos, inclusive jornalistas, para aquela região, a fim de que nosso Canaan fosse descoberto.

— É uma ilusão dos brasileiros, respondeu-me Daniel. As árvores do Amazonas existem nos alagadiços, nos pantanais, salteadas, longe uma da outra. São centenárias, de enormes copas. Mas não é possível aproveitá-las, pois o preço de sua extração é maior do que o seu valor comercial. Tornam-se antieconômicas. Para lá, quando Ministro, me transportei, com um grupo de técnicos. E a conclusão deles foi a seguinte: a salvação da Amazônia está nas florestas virgens e nos charcos. No dia em que forem drenados os terrenos e destruídas as matas, como é muito débil a camada de humus, a Amazônia se resolverá num vasto e novo Saara...

A opinião de Daniel é de gritante atualidade. Impunha-se-lhe, como patriotas o imperativo de calar...

Quando presidi o Centro dos Lavradores de Ubá, organizamos grandes Exposições pecuárias e agroindustriais. Uma delas foi inaugurada pelo Ministro Daniel de Carvalho. Enquanto, no Parque da Exposição, Daniel cavalgava um fogoso corcel, veio-me à lembrança um acontecimento de sua juventude. Estudante ainda, como todo moço da época, escreveu um soneto e o enviou a um jornal de Ouro Preto, então capital do Estado. O crítico do semanário, que era o conhecido e consagrado poeta simbolista Alfonsus de Guimarães, publicou a apreciação abaixo, no número seguinte:

“Daniel Serapião de Carvalho.

Daniel Serapião.

Será pião?

Não.

Será

Peão..

Jamais encontrei profecia tão errada, maximé com referência ao grande escritor, jornalista, financista, professor, jurisconsulto, parlamentar e estadista, que ocupou posição de tão alto destaque nos destinos e na história da República.



terça-feira, 26 de julho de 2011

A Manifestação Inusitada

Recebemos, no correr da vida, várias manifestações. Foram-nos oferecidos alguns banquetes, tomamos parte em numerosas solenidades de alto coturno, mas uma nos deixou perplexos.
Depois do jantar, no hotel, saíramos com um colega, o Dr. José Felipe da Silva, então representando Guaxupé na Assembleia Legislativa e hoje Diretor da Caixa Econômica Estadual. Procurávamos uma distração noturna e ele, como sempre, propôs um filme de bang-bang. Como não assistimos a tais fitas, optamos pelo teatro. Separamo-nos. Inaugurara-se um teatro novo em Belo Horizonte, no antigo Cinema Pio XII, onde a Companhia Roseli Mendes levava ao palco uma peça curiosa — “A Tradicional Família Mineira”. Para lá nos dirigimos.
Quando penetramos no salão, medimos a assistência. Pequena e sem um conhecido sequer. Alegramo-nos. Ficávamos à vontade. Partimos para a extremidade vazia e, como caipira que sempre fomos, viramos uma cadeira, nela pusemos os pés, recostamos sobre a outra o corpo cansado e acendemos um charuto que ganháramos pouco antes.
A comédia era, em verdade, mui chistosa e dávamos boas gargalhadas, que deviam assustar o auditório desconhecido.
Por fás ou por nefas, começou nesta altura, o estranho quiproquó. Abordou-nos um cavalheiro, interrogando:
— Dr. Odilon Azevedo, o Sr. vai estrear quinta-feira, no Francisco Nunes?
Repimpado nas cadeiras, apenas tirei o charuto da boca e respondi:
— Não sou Odilon Azevedo. Conheço-o. Deve estar representando, com Dulcina, no Rio.
            E continuei — quando o marido mineiro padecia, no palco, as afrontas da esposa-megera — a soltar gargalhadas.
Porém, o incômodo interrogante voltou dentro em pouco, em tom de intimidade:
— Dr. Odilon, o Sr. está gostando da peça?
— Estou gostando, mas não sou Odilon. Procure para trás, que ele deve estar por aí...
E continuei recostado, pés sobre a cadeira e charuto na boca.
Durou pouco, todavia, a nossa tranquilidade.
O artista principal da Companhia, de nome arrevesado e polaco, no intervalo, abriu o pano de bocas com um grupo de moças, e descarregou o discurso:
“A Companhia Roseli Mendes se acha envaidecida e sobremodo orgulhosa em prestar esta homenagem. Está assistindo nossa representação um dos maiores artistas nacionais, que percorreu os palcos do Brasil de Sul a Norte e, transpondo o oceano, elevou o nome do Teatro nacional nos grandes tablados europeus. Odilon Azevedo, glória, glória, glória”.:, e foi por aí afora.
Como o homem baixasse, de quando em vez, o olhar flamejante sobre nós, retirei as pernas da cadeira. Peguei o charuto e olhei, assustado, para a assistência. Nenhum conhecido. ‘Retomei a displicente posição anterior, enquanto o discurso prosseguia.
O pior foi quando, terminada a representação, fui saindo atrás do povo e o moço inconveniente nos puxou pelo ombro:
— Dr. Odilon, d. Roseli Mendes quer um bate-papo com o senhor, no camarim.
—Já disse, respondi, que não sou Odilon Azevedo. Vá baixar noutro centro...
E apertei o pé, mais assustado ainda.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O hábil Antônio Carlos

A política antiga (de que há, infelizmente, reminiscência e sobrevivência a extirpar) era, em regra, feita de hipocrisia, falsidade, impostura e fraude. A mentira e o engodo estavam no substractum das relações sociais com os políticos. Afirmava-se que o povo gostava de ser enganado. Por isso, os políticos nunca negavam os pedidos, por mais disparatadas que se vestissem as pretensões, embora certos de que não as cumpririam.

O mestre nesta arte de iludir foi Antônio Carlos. Aparício Toreli, na “A Manha”, chamava-o, semanalmente, “o - Sr. Antônio-Promete Carlos-Não Cumpre”.

Lembro-me dele quando, em propaganda pelo Estado, aqui chegou para plantar a pedra fundamental da fracassada sede do Ginásio Mineiro. Grande orador, fez um discurso de improviso, de fato magistral. Sua verve era espantosa.

Ao depois, foi ao Ginásio São José, onde eu, acadêmico, era o Presidente do Grêmio “13 de Maio” e diretor de “O Ginasiano”, cuja edição lhe era dedicada como homenagem dos moços ao velho administrador. Corria o ano de 1928.

Nessa ocasião, contaram-me vários episódios que lhe retratavam a sagacidade, ditada pela vivência e pela reconhecida experiência do meio.

Quando Antônio Carlos fez sua excursão pelo Estado, tinha um discurso preparado, a “chapa”, para todas as cidades. Terminava assim: “Todo homem público tem duas terras: a terra do nascimento e a terra do coração. Minha terra do nascimento é Barbacena, mas minha terra do coração é esta” — e citava o nome da cidade em que se achava.

Quando o Presidente chegou a São João del Rei e pronunciou o discurso, de praxe, no Teatro, pela própria rivalidade com a cidade vizinha, ao terminar, a casa quase veio abaixo, pois seu coração estava ali e não em Barbacena. O senador Elói, médico velho e que tinha um pigarro, a tosse característica dos fumantes, resolveu organizar uma embaixada e acompanhar o Presidente até sua terra natal. Antônio Carlos foi recebido com grandes homenagens que encheram o dia. Mas como o trem de ferro voltava às quatro horas da tarde, a embaixada de São João del Rei se despediu, sem embargo da insistência para que ficassem até as comemorações da noite. Livre dos vizinhos, o Presidente respirou e pôde pronunciar seu discurso no Clube, ignorando que a Comissão sãojoanense deixara, para representá-las, o senador Elói.

E Antônio Carlos repetiu seu discurso, terminando: “Meus conterrâneos, todo homem público tem duas terras: a terra do nascimento e a terra do coração. Mas eu sou diferente, porque só tenho uma, única, exclusiva, Barbacena, minha terra do nascimento e do coração”.

Nessa altura, fez-se ouvir a tosse do senador Elói. E Antônio Carlos, imediato, apontando para o rumo do pigarro:

— E São João del Rei também!

Conheci, nesse tempo, o moço Bias Fortes, então Chefe de Polícia e que acompanhava sempre o Presidente. É com ele esse outro caso.

Os estudantes das Escolas superiores viviam às turras com o Presidente. E resolveram arrancar o seu busto e arrastá-lo pela Avenida João Pinheiro. Bias Fortes, quando avisado do incidente, pôs a tropa na rua. Mas foi comunicar ao Presidente Antônio Carlos:

— Presidente, se ouvir algum estampido não se assuste: mandei atirar nos arruaceiros.

— Mas eles estão arrastando a estátua pela Avenida João Pinheiro?

— Estão, Presidente.

E ante a surpresa de Bias:

— Então, recolha a tropa, incontinenti, e não permita um tiro sequer.

E depois de curta pausa:

— Imagine que os estudantes resolvessem arrastar o busto pela Avenida do Contorno! Seria muito pior...

sábado, 28 de maio de 2011

O Pôquer

O jogo de pôquer foi, sempre e sempre, a distração, ou vício, dos antigos donos de Ubá. Jogava-se diariamente na casa do senador Carlos Peixoto de Melo, ou na de seu cunhado, Cel. Camilo Soares de Moura. Um dos “meninos”, que conheci octogenário, conservou esse hábito até morrer, com mais de noventa anos: era o deputado Francisco Peixoto Soares de Moura, chefe do “Partido Capivara”, de Rio Pomba, adversário valente do “Partido Jagunço”, famoso pela bravura no tempo em que os Soares empolgaram a região (Carlos Soares em Ria Branco; Camilo Soares Filho em Ponte Nova; Raul Soares em Ubá e Rio Branco). Rio Pomba não podia fugir a tal domínio.

Os jornais da Capital, na época, glosavam sua mestria no jogo do pôquer. Enfrentava e vencia o senador Antonio Azevedo, considerado o mais hábil jogador do país.

Determinado dia, o Dr. Lauro Solero, já professor da Faculdade de Medicina, convidou-nos para jogar pôquer, em que tomaria parte seu avô, o nomeado Francisco Peixoto, na casa então de nossa propriedade. Assaltou-nos viva curiosidade, ao lado de certo e procedente temor. Como, entanto, se estabelecera que seria diversão de perder pouco, com aprazimento aceitamos o convite e fomos.

O método do Dr. Chico Peixoto, percebemos logo, era o de distrair os parceiros e contar histórias. Jogava palrando. E, ao distribuírem-se as cartas, começou:

— Quando o Imperador D. Pedro II visitou Ubá, para inaugurar a E. F. Leopoldina, ocupava eu a Promotoria de Justiça. Hospedou-se ele na residência do Dr. Cesário Alvim, Fazenda da Liberdade.

E ao perceber meu espanto, ante fato tão remoto, acrescentou, pronto:

-Era eu, na ocasião, Promotor muito moço...

Ao primeiro que abriu o jogo, ele dobrou, mas nós, que tínhamos uma trinca branca nas mãos, fugimos ante a fama do apostador. E ele continuou tranquilamente:

— Pedro II era um homem irrequieto, agitado, não parava, mosquito elétrico ou torniquete hidráulico, ao oposto do retrato que lhe traçam alguns historiadores. (Em verdade, a história fez tudo para aproximá-lo do bonachão D. João VI, quando era digno filho do endiabrado Pedro 1).

O segundo parceiro abre o jogo, mas recebe, no estalo, a dobra do perito conhecedor do pôquer...

E ele, imperturbável:

— Tão apressado era Pedro II que, terminada a festa principal, embora constassem do programa várias solenidades, inclusive um baile pomposo à noite, mandou logo prender e ajaezar os cavalos, categórico:

— Vamos para o Rio Pomba, continuando a excursão. E as alimárias foram prontamente preparadas. Nós, autoridades, resolvemos acompanhar a comitiva imperial até a cidade vizinha.

Novamente um dos parceiros abriu a parada e de novo ele dobrou, sem interromper a exposição:

— Na estrada, o Ministro do Império, Dr. João Alfredo Correia de Oliveira, me perguntou:

— Sr. Promotor, o Juiz de Direito de Ubá é bom magistrado?

— Sr. Ministro, respondi, o Dr. Antonio Cesário seria um excelente Juiz em qualquer cidade de Minas. Em Ubá, é claro, sendo o seu irmão, o Dr. Cesário Alvim, o chefe político, não pode ser imparcial.

— E por que, voltou João Alfredo, o Promotor, sabendo disso, não denunciou o fato ao Ministro?

— Pelo mesmo motivo, respondi, que o Sr. Ministro do Império, agora tendo conhecimento do fato, não vai tomar nenhuma providência!

E dobrou no jogo, mais uma vez...

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Juiz Azevedo Corrêa

Acabo de receber, acompanhado de linda carta do Prof. Azevedo Corrêa Filho, o primeiro livro de versos de sua filha Terezinha Corrêa Moreira — “Poemas”. Senti-me transportado, ante o lirismo indelével da poetisa, à época espiritual da Grécia permanente, nos tempos de Anacreonte e Safo, ou ao “Jasmim das Carícias” da Universidade de Sankoré, em Tombuctu. Vieram-me à memória as “Preces no Tempo da Peste”, do rei hitita Mursilis II e os versos de Enil, a princesa babilônica do ano 2200 AC. Recordei-me dos “rubaiyats” de Omar Khayyan e da famosa canção romana PER VIGILIUM VENERIS. E transpus meio século de vida e de lutas e me encontrei, circulando, a passos lentos, o Jardim S. Januário, em companhia do Juiz José da Mota Azevedo Corrêa, discutindo temas literários e bebendo lições de letras e direito.

Acabara, o ilustre magistrado, irmão do famoso poeta do “Mal Secreto” (que não gostava de ser chamado o “poeta das Pombas”), terminara o Juiz ubaense os dois volumes de seus “Comentários ao Cod. Proc. Civ. Mineiro” (que destino teve essa obra?) e eu, como companheiro inseparável de seu filho Azevedo Corrêa Filho, colega de Ginásio, de Faculdade e de tertúlias, estava amiudadas vezes em sua casa, que pertencia, aliás, à nossa família.

A poesia habitava a alma e o sangue dessa GENS privilegiada. A delicadeza, a sensibilidade, a emoção, transpareciam em seus mínimos gestos. Pai e filho versejavam com tamanha naturalidade, que se diria ser o verso sua linguagem natural.

Havia eu decorado um soneto do Dr. Azevedo Corrêa, da “Galeria Romana”, sobre Mário

“De simples camponês à louca orgia assoma
da vida; e fez se erguer às altas posições,
Mário — o triunfador dos cimbros e teutões,
conclamado, por isto, o “Fundador de Roma”.

“Sete vezes assoma ao Consulado, e toma,
Na derradeira vez, cruéis resoluções,
afogando no sangue as cegas multidões,
massacrando os rivais que o seu rancor não doma”.

O outro filho, mais moço, Raimundo Corrêa Sobrinho, é um belo espírito e também vate de alto apreço, autor da “Oração aos Aflitos”, da José Olímpio Editora.

Quando pleiteei o ingresso na faculdade de Direito, ainda no Catete, Max Fleius, então secretário e consagrado historiador, quis barrar-me a matrícula. Havia um “Souza” em meu nome, que pouco uso, para atrapalhar a escrita. Deu-me o Dr. Azevedo Corrêa um atestado concludente e tudo se harmonizou.

Sempre acreditei que o Dr. Azevedo Corrêa fora um dos nomes importantes de nossa literatura. Mas aquela simplicidade, que raiava pela timidez, impediu que sua produção intelectual se tornasse conhecida.

Padeci, com seus filhos, a morte, em 1928, desse ilustre e humaníssimo varão, na mesa de operações de um Hospital juizdeforano.

Lendo, agora, os “Poemas” de Terezinha Corrêa, comprovei que a sensibilidade e o coração se perpetuam, na osmose da hereditariedade inarredável, como força cíclica das gerações sucessivas.

sábado, 14 de maio de 2011

O Fabuloso Peixoto Filho

Certa feita, Agripino Veado fora jantar em nossa casa. Com aquela palestra de encher a sala, lembrava os tempos de infância nas ruas da cidade, a energia e severidade do velho João Gomes Veado, o duro período de tipógrafo na “Gazeta de Ubá”, as espertezas para engodar o Juiz de Direito, Dr. Hermenegildo de Barros, a quem fora secretariar, sendo por ele nomeado Escrivão de Crime da comarca e depois Escrivão de Paz de Sapé. Agripino acabava de aposentar- se como Secretário do Supremo Tribunal Eleitoral, já aposentado, pois, como advogado da Prefeitura do Distrito Federal. Que memória prodigiosa! As figuras da cidade pequena corporificavam-se, renasciam de sua palavra mágica e estavam vivas e se movimentando, num rascunho agitado do ironista perfeito. Quando, no entretanto, lembramos a sua ida para um Tabelionato de Muriaé, antes ainda de sua formatura em direito e de se tornar o causídico famoso, Agripino ficou sério.
— Devo-o, disse ele, a Peixoto Filho.
Lembrou a estreia famosa de seu companheiro e mestre na Câmara Federal, no pedido de licença para processar Alfredo Varela, quando, com um improviso, foi logo considerado o maior orador político do país. O lema da Bandeira de Minas — Libertas quae sera tamen — estava sendo recordado por Barbosa Lima para encantoar os mineiros, mas Peixoto Filho lembrou-lhe que a liberdade republicana fora conseguida e, para conservá-la, nós a queríamos sob a lei, alterando o lema para “sub lege libertas”.
O antigo líder da Maioria e antigo Presidente da Câmara Federal, o conhecedor profundo de Platão e Bergson, o ledor impenitente das revistas de Paris, Londres e Roma, o frequentador assíduo das livrarias e palestrador invejável das literárias, o orador gigante, o Peixoto Filho estadista, surgia sob outras roupagens no seio da cidade provinciana, bem mais modestas, mas não menos expressivas. Era o advogado invejável e o jornalista completo, inteligente, culto e doutrinador, dirigindo uma folha em Ubá e outra em Rio Branco, com colaborações frequentes das jovens Leocádia e Regina Godinho.
Fascinou-me, sobremodo, na narrativa penetrante de Agripino Veado, ao traçar o retrato de corpo inteiro do glorioso ubaense, a fagulha de gênio que o animava.
— Éramos, explicava Agripino, éramos dois os secretários de Peixoto, que em regra não redigia: eu e o Onofre Andrade. Ele ditava, ao mesmo tempo, umas razões criminais para mim e umas razões cíveis para o Onofre, com uma rapidez que mal acompanhávamos seu raciocínio e suas palavras. Ao terminar assuntos tão diversos, nada havia a acrescentar ou corrigir. A forma castiça, a linguagem rica, o argumento incisivo e convincente. Onofre posteriormente me confirmou o fato.
Era Onofre Andrade, professor da Faculdade de Odontologia de Juiz de Fora, proprietário de um laboratório de produtos dentários, cuja produção não vendia no Brasil, pois era integralmente remetida para os Estados Unidos, quando secretariava Peixoto Filho, mero lançador municipal de Ubá.
Enquanto Agripino Veado recordava a figura ilustre com admiração quase religiosa, voltava-me o desejo nunca satisfeito, de conhecer o “Diário” que Peixoto deixou e o livrinho que escreveu: “Reflexões após 14 meses de minha queda política”...

domingo, 8 de maio de 2011

Convicções do Presidente

Ninguém que o tenha conhecido de perto, negará a formação carismática do Presidente Artur Bernardes. Aquele ângulo de doutrinador, aquela confiança em si próprio, aquele idealismo que colocava a Pátria acima de tudo, em todos os momentos, advinha, como acentuou Afonso Arinos em “Um Estadista da República”, de “uma fé quase religiosa na missão republicana que lhe tinha sido atribuída por Deus ou pelo destino”. Sempre preocupado com o futuro do país, foi, indubitavelmente, pela pureza e sinceridade de convicções, a maior figura de patriota do Brasil, depois de 89. A inquebrantável confiança na justiça e na moral que adotou, levava-o a crer na inarredável vitória final das lutas que sustentava, servido por qualidades excepcionais, não sendo a menor a pasmosa memória fisionômica. Podia ser apresentado, em meio à multidão, a determinada pessoa uma vez, que, passados anos, a reconhecia e chamava pelo nome. Registrei vários fatos dessa espécie.


Mas o caráter messiânico de sua formação é inegável. Nos acontecimentos menores, via o dedo superior a guardá-lo desde o início da carreira. Quando simples Agente Executivo de Viçosa, foi chamado pelo Governador, partindo para a Capital. Quando se preparava, no hotel belorizontino, para a audiência marcada em Palácio, notou que esquecera, em Viçosa, as abotoaduras da camisa de punhos engomados. Era uma vez a sua apresentação, o contato com o governante, a entrevista que lhe abriria o caminho futuro. Desanimado e contrafeito, puxou, lentamente, a gaveta da mesinha a que se abancara. E, maravilha, estava ali um par de abotoaduras deixado por um hóspede desatento. Era o sinal mais evidente da missão que lhe estava reservada, através de uma longa vida tempestuosa.

Tive demonstrações numerosas dessa convicção robusta, mas uma delas, sobretudo, me calou no espírito.

Estávamos no limiar de uma das campanhas desiguais, em que o governo tem tudo e a oposição nada.

O Baião, aquele símbolo de dedicação extremada ao Presidente e a quem estava entregue a sede do partido, dirigiu-se a Bernardes, num tom de súplica:

— Presidente, é necessária a sua volta para Minas, pois com sua presença o PR crescerá e nós nos tornaremos maioria.

Bernardes relanceou o olhar para o espaço. Lembrou, ao certo, a luta brutal em que se empenhava. O ditador Vargas mandara ao Congresso um projeto entreguista do petróleo brasileiro. E ele, com a autoridade imensa do seu passado e de sua experiência, conseguira transformá-lo em projeto nacionalista. Voltando-se, rápido, para o fiel auxiliar:

— Não posso voltar, Baião, porque se eu sair do Rio, eles me vendem o Brasil!

Prevenido contra a imprensa, como vítima de campanhas insidiosas e desmoralizantes, era sobretudo cauteloso com os representantes do jornalismo, que, para ele, eram os “anjos decaídos”, sempre a farejar escândalos e sensacionalismo. Lembro-me de um dia em que estava a conversar com o Presidente, na Rua Valparaíso, 40, quando ressoou o telefone. Era um jornalista de ‘O Globo’, perguntando se Bernardes estivera, na véspera, à tarde, com Eurico Dutra em Palácio.

— Pode desmentir a notícia pelo seu jornal, informou. Não estive, ontem à tarde, com o presidente Dutra.

E para mim, sem perder a austeridade:

Esses jornalistas são muito bisbilhoteiros e enredadores. O Presidente me ouve, mas, como não tem ideias próprias, ouve outros depois e às vezes fica com a última opinião. Ele me perguntou se estive com Dutra à tarde. Não. Estive de manhã.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Assassínio do Dr. Carlos Soares

Ary Gonçalves


Uma das leituras que me impressionaram, há quarenta anos, foi o livro de Evaristo de Morais — “Memórias de um Rábula Criminalista”. Ali, ele narra, com traços de tonalidade forte, o que foi o Júri do Assassino de Carlos Soares de Moura, representante de Rio Branco na Câmara Municipal e chefe político do município. Retrata o tumulto, os jurados e assistentes pulando pelas janelas ou galgando os telhados, os Soares, com a capangada de carabina frente ao Fórum, para justiçar o acusado se absolvido, tudo formando um debuxo tétrico do ambiente social e dos excessos de politicagem do interior brasileiro. As cenas de sangue eram comuns, após a vitória ou derrota eleitorais dos participantes.

Pouco depois da leitura, os azares da profissão iniciada levaram-nos a Alto Rio Doce, então vilarejo quase inatingível, sem estradas, sem condições de habitabilidade razoável, simples amontoado de casas velhas no alto do morro enorme, onde as duas ruas plantadas no despenhadeiro se encontravam no largo da Igreja, continuando numa só avenida. Naquela humildade, ninguém poderia prever a bela e próspera cidade dos nossos dias. Apenas existiam, na época, duas construções boas: o Foro novo e a residência do Major Silvino Viana, o herói, mártir ou bandido, da catástrofe de Rio Branco, que lá se tornara o pajé da comunidade. Não se movia uma palha, no município, sem o assentimento do Major.

Todos me informavam que qualquer coisa com a justiça, dependeria do Major Silvino. Na manhã seguinte à chegada, fui procurá-lo. In illo tempore, os rábulas estavam escorraçados das lides forenses, mas em Alto Rio Doce era ele quem requeria. Para tanto, tinha os papéis assinados por um bacharel formado e hoje Professor emérito da Faculdade de Direito de Juiz de Fora.

Morava o Major Silvino Viana num palácio, com escadarias de mármore, ornado de tapetes grossos, móveis de alto luxo, bibelôs e miçangas de cores variegadas. Lembrava um rajá indiano em meio à pobreza circunjacente.

— Como me sinto feliz, declarei-lhe, ao cumprimentar um homem cuja fama transpôs os limites do Estado e se projetou nas páginas do Evaristo de Morais.

— Nem me fale nisso, nem me fale nisso. Tenho horror de recordar esse episódio. Sou um homem simples; não fumo, não bebo, não jogo, não tomo café.

— Mas matar... Tomou-me pelo braço, levou-me para a rica sala de visita.

— Vou contar-lhe. A Campanha Civilista empolgou todo o Brasil. Era a primeira vez que surgia um candidato com probabilidade de vitória popular. A chefia de Peixoto Filho era respeitável e segura. Na época, era eu um moreninho ativo, esperto, trabalhador, conhecido e estimado de todos. Foi-me cometida a atribuição do alistamento. O Dr. Carlos Soares era apenas um “Soares”; respeitado pela autoridade de prefeito e pelo temor. Ás quatro horas da tarde, diariamente, deveriam ser entregues, no Cartório Eleitoral, os requerimentos. No primeiro dia, chegava o Dr. Carlos Soares, descia do cavalo e ainda de botas e esporas, tala na mão, entregava o maço, declarando: 15 requerimentos. O Tabelião enchia o recibo. E eu, em seguida, informava: 20 requerimentos. No dia seguinte, a cena se repetia. O Dr. Carlos: 20 requerimentos. E eu, logo após: 30 requerimentos. Não podia ele admitir que um mulatinho, sem eira nem beira, pudesse levar-lhe vantagem. Foi-se irritando, até que, certo dia, o Dr. Carlos Soares declarou, vitorioso:

— 40 requerimentos.

— 50 requerimentos, informei.

E o Dr. Carlos, arrogante:

— Que está dizendo?

— Ora, respondi, estou, doutor, apenas cumprindo o meu dever.

—Moleque, ainda tem coragem de me responder?

E, sem mais palavras, foi o Dr. Carlos levantando a tala. Perturbado pelo inopino do gesto, afastei- me, de costas, para dentro do Cartório Eleitoral, exclamando em grito:

— Não faça isso, doutor, não faça isso.

A tala estalava próxima ao meu rosto. Mas o agressor a levantava novamente e a desferia. Eu me recuava, repetindo a frase inicial. Quando, porém, esbarrei, de costas, na parede de fundos do Cartório, e ele continuava a avançar e brandir a arma ultrajante, não tive opção. Saquei do revólver e o descarreguei...

Enquanto o Major Silvino Viana rememorava, molemente, o acontecimento sinistro, lembrava-me eu do incidente calamitoso que ensanguentara Ubá, quando os Soares mataram, a bala, o tio, Dr. Camilo de Moura Estêvão, já ferido e no colo da esposa, D. Cocota...

— Tenho horror, repetia o Major Silvino, tenho horror de lembrar esse episódio.

Mas a verdade é que a minha impressão foi outra. As minúcias com que descrevia os fatos, os detalhes que ressaltava, a indicação de números e horários, a citação de personagens, a frieza da narração e uma alegria macabra retratada no semblante, deixaram-me a sensação de um prazer sádico do narrador...

sábado, 23 de abril de 2011

COISAS QUE A VIDA ESCREVE

Anderson Moreira escreve no Google o seguinte sobre Ary Gonçalves:

Ubaense nascido em 1905. Ilustre advogado, professor, jornalista, escritor, historiador, ruralista e homem público. Como político e líder de classe foi Deputado Estadual, fundador e presidente do Centro dos Lavradores, da Associação Comercial de Ubá e da Associação dos Empregados no Comércio de Ubá. Fundador e membro da Academia Ubaense de Letras. Faleceu em 1994.

Procurei mais dados sobre Ary Gonçalves por causa de um livreto que caiu nas minhas mãos e que é da sua autoria , a saber: "Coisas que a vida escreve". Trata-se de uma coletânea de crônicas, publicadas no início do século XX no jornal "Cidade de Ubá", editada em 1985 pela Editora Folha de Viçosa Ltda. Ao ler as suas crônicas, escritas de uma maneira gostosa de serem lidas e referentes também às cidades vizinhas de Ubá, ocorreu-me a ideia de que as mesmas talvez pudessem interessar também a outras pessoas desta região abençoada. O próprio autor, ao publicar o livreto, explica da seguinte forma as suas razões para publicar as crônicas:

A subliteratura enche as bibliotecas. São páginas escritas no dia-a-dia, destinadas à vida efêmera dos jornais, a um bocejo de curiosidade ou de interesse. No meio desses escritos digamos transitórios, há fatos e figuras que merecem destaque e que devem permanecer, mercê da ação exercida no ambiente social de uma época.



A exemplo dos numerosos cronistas de ontem e de hoje, de Machado de Assis a Carlos Drumont de Andrade, reunimos algumas crônicas publicadas na “Cidade de Ubá”, que podem servir ao historiador futuro, sequer na parte dos desenhos e do pitoresco.


O leitor julgará se merecem as honras da perpetuidade esboços tão despretensiosos e destinados ao túmulo da memória.

Faço do meu blog um veículo para aqueles que desejarem conhecer as 53 crônicas de Ary Gonçalves.
Segue hoje a primeira.


 Queda dos Peixotos

(Depoimento histórico)

Magro, meio curvo, chupado de rosto, cavanhaque pontiagudos terno branco, chapéu do Chile, sapatos de verniz, o Dr. Carlos Peixoto de Meio era o protótipo do político municipal. O último senador do Impéno, não empossado, era o chefe da oligarquia que se plantou no município por meio século e, embora monarquista inarredável, não dava ensejo, aqui, aos republicanos de porem em prática suas teorias pohficas. Da. Agostinha Brandão, sua esposa, era matrona do Serro, à antiga, mais dona cie casa do que figura dos acanhados meios sociais da época.

O filho do casal, Peixoto Filho, após o novo regime, com assombrosa inteligência, vasta cultura e prestígio nacional, mantinha o domínio doméstico na comarca. O Brasil era republicano. Ubá, monárquico.

Essa contradição provocava a reação dos remanescentes correligionários de Cesário Alvim.

Como pôde cair a importância predominante dos Peixotos nestas terras? A oposição era forte e vinha sendo esbulhada nos reconhecimentos. Na penúltima eleição, de 1907, era clara a vitória dos oposicionistas. Mas no reconhecimento de poderes que era feito pela Câmara Municipal foi anulada a 5•a seção de Ubá e apurada a de Campestre. E era uma vez a eleição dos vereadoz-es oposicionistas, Sebastião Januário Carneiro e Galdino de Faria Alvim, sendo eleitos os situacionistas Agenor Albino de Souza e Manuel Teixefra de Siqueira. O laudo do perito Dr. Levindo Coelho, julgado em 1908 apaixonado e faccioso pelo Tribunal (Revista Forense, vol. X, fls. 510-519), não salvou a oposição possiveimente vitoriosa.

Mas em 1910, seguindo Rui na Campanha Civilista, os Peixotos cederam a vitória aos liderados dos Drs. Cristiano Roças e Martinho Pinto.

A tradição municipal conta que, após o tiroteio na Câmara, o Dr. Carlos Peixoto de Meio, que se negava a sair da cadeira de Presidente, teve a mesma, com ele, arrancada e carregada por dois. jagunços para o centro do largo da Matriz.

Não foi assim. Ouvi, a respeito, o depoimento da figura central da reação, Domingos Jório, então chefe oposicionista de Tocantins.

Quando Raul Soares voltou de São Paulo e assumiu a chefia do hermismo em Rio Branco, em substituição ao irmão assassinado, Dr. Carlos Soares, veio a Ubá para estruturar a campanha situacionista contra o tio, Carlos Peixoto, e o primo, Peixoto Filho.

Difícil era vencer, em Tocantins, Neca Teixeira e Zeca da Costa. Mandou chamar Domingos Jório. Teve, parece, má impressão do “chefe”, na apresentação. deixando transparecer essa sensação de constrangimento. Aquele rapazola, condutor de guarda-costas de São José das Garruchas, não estaria à altura do cometimento.

— Vou mandar-lhe, diz Raul Soares, um batalhão policial, para você ganhar a eleição.

— Não é necessário, responde Jório. Se eu não ganhar, também não perco. Se for preciso, da segunda vez aceito a força pública.

Aquela resposta — se não ganhar, também não perco — mais embaraçou Raul, que apenas disse:

— Não entendo, mas seja como quiser.

De fato, nas eleições, dispondo dos mesários de confiança, Domingos Jório, combinadamente, fez votar todos os seus eleitores em primeiro lugar. Os títulos, trazidos por Neca Teixeira, eram colocados por baixo. E as explicações claras:

— Veja, está tudo em ordem. São chamados os de cima. Fiscalize e não tenha dúvidas. Todos votarão.

Quando, porém, votou o último eleitor hermista, da sala vizinha saíram os canos de carabinas e começou o tiroteio. Os mesários se alarmaram, os eleitores civilistas fugiram espavoridos. Mas Domingos Jório, teatral:

- Que é isso, gente, que é isso?

E ao cessar a fuzilaria e serenarem os &nimos, não havia um só eleitor de Neca Teixeira, da multidão que se apinhava frente à seção eleitoral. E Domingos, calmo, para o chefe civilista:

— Tudo passou. Pode trazer os seus eleitores.

Mas os cabras da roça já estavam longe. E que força os traria de novo, para os canos dos fuzis?

Vencida a eleição contra o civilismo, o malabarismo do velho Carlos Peixoto fê-lo, novamente, Agente Executivo Municipal.

Mas Domingos Jório não se conformou. Marcada a sessão da posse, na hora exata trouxe para o salão do Forum os seus “companheiros”. E ao sinal dado, um seu compadre, barbeiro no Morro do Caputo, como combinado, descarregou o revólver no assoalho. Voaram assistentes por todos os lados. O único que tentou reagir foi o Toté, informa Jório, que estava prevenido e levou-lhe a arma ao peito, explodindo peremptório:

— Não saque a garrucha, porque morre. Todos já saíram e você não fará o sacrifício inútil. Somos o governo.

Retirado o último vereador, fechou ele, com os companheiros, o prédio do Forum, indo calmamente entregar a chave da porta ao Dr. Câncio Prazeres, Juiz de Direito. Este não quis recebê-la, alarmando-se e advertindo que o Governo poderia mandar um batalhão para garantir a posse.

— Nem pense V. Exa. nisso, afirmou Jório. Tudo está articulado com o delegado, Dr. Waldemar Loureiro, que foi pescar.

E a família Peixoto resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro...