O Feijão
Como todas as Ditaduras, a de
Getúlio Vargas caracterizou-se pelo controle absoluto, pela absorção total das
liberdades públicas. Desceu a intervir nos atos, atitudes e palavras
individuais, através de uma hierarquia em que os régulos se refestelavam, sem
que o regime de exceção permitisse reação ao povo. Os maiores crimes e os mais
escandalosos assaltos se praticaram sem apelo, O “câmbio negro” se
institucionalizou.
Foi nessa época negra que se deu o episódio do “feijão”. A Ditadura entrava
casa a dentro e fiscalizava o que se punha nas panelas.
O Dr. José Januário Carneiro era um eminente professor da Escola de Minas
de Ouro Preto e, à proclamação da República, fôra nomeado Membro da Intendência
da velha Capital do Estado, em virtude de seu próprio espírito público.
Resolveu o problema da água e esgoto da comuna. Como mantinha lá o afamado
Colégio Mineiro, resolveu fundar, nesta terra de seus ancestrais e em sua
própria Fazenda da Boa Esperança, em 1905, o Ginásio São José. A ele deve a
região, o Estado e o próprio país um tributo inestimável como grande benfeitor,
num tempo em que o ensino era privilégio de poucos. Pois o Dr. Fecas foi
intimado, pelo Inspetor Federal, a suprimir o feijão no jantar dos alunos. O
sistema era de internato e, como não havia estabelecimentos de ensino
secundário próximos, os estudantes vinham das cidades vizinhas e, às vezes, de
longes paragens, através de navios e estradas de ferro.
Tentando cumprir a ordem oficial, o Dr. Fecas esbarrou com a greve dos
alunos: recusaram eles o jantar sem o prato costumeiro. Analisando as razões
oferecidas pelos internos e atendendo a que o feijão era considerado um prato
básico, alimento rico em proteína, substituto da carne no meio rural, deu razão
aos estudantes e resolveu interpor um recurso para o Ministério da Educação.
Justificou com o hábito inveterado da localidade, com o valor alimentício do
produto, com a intervenção injustificável. O processo foi ao Consultor Jurídico
do Ministério, que, após minucioso e douto estudo de leis discricionárias,
opinou pela proibição oficial, resultando a denegação do recurso. Intimado da
decisão, o Diretor do Ginásio não se deu por vencido. Julgava uma interferência
indébita em sua cozinha. Recorreu do despacho do Ministro para o Conselho Superior
da Educação. E homens eminentes puseram-se a estudar profundamente o delicado
problema dos alunos do Ginásio ubaense. O professor Reinaldo Porchat, então
Reitor da Universidade de São Paulo, encheu páginas. O Pe. Leonel Franca,
filósofo de alto gabarito, deitou larga falação sobre o malsinado alimento
servido no jantar dos estudantes. Seus votos ocuparam folhas do “Diário
Oficial” da União. Naturalmente se pesquisaram os regimes alimentares dos
sumerianos e egípcios, os cardápios dos gregos e os festins dos romanos, os
banquetes dos castelões medievais e dos pobres oficiais das corporações, a
abundância do Renascimento e a fome que fez explodir a Revolução Francesa. Para
concluir, no entretanto, que os alunos do Dr. Fecas não podiam jantar feijão.
Notificado do veredicto do Supremo Conselho, num inconformismo que ralava
pela convicção de cavaleiro andante, o Dr. José Januário Carneiro decidiu ir à
autoridade máxima, S. Exa. o absoluto presidente da República, ditador Vargas,
a quem encaminhou o último apelo.
Passaram-se dias de tranquilidade e feijão. Os alunos, satisfeitos, nem
mais se lembraram do fato pitoresco. Eis senão quando, sem mais embargos,
explode a bomba de efeito retardado. A última palavra se pronunciou:
“Suprima-se o feijão”. A máquina enorme se movimentara, abalaram-se ministérios
e jurisconsultos, mas a Ditadura, entrando pela porta da sala, atravessara toda
a casa e atingira a cozinha, mandando esvaziar a panela de feijão...