domingo, 25 de setembro de 2011

O Feijão


O Feijão
         Como todas as Ditaduras, a de Getúlio Vargas caracterizou-se pelo controle absoluto, pela absorção total das liberdades públicas. Desceu a intervir nos atos, atitudes e palavras individuais, através de uma hierarquia em que os régulos se refestelavam, sem que o regime de exceção permitisse reação ao povo. Os maiores crimes e os mais escandalosos assaltos se praticaram sem apelo, O “câmbio negro” se institucionalizou.
Foi nessa época negra que se deu o episódio do “feijão”. A Ditadura entrava casa a dentro e fiscalizava o que se punha nas panelas.
O Dr. José Januário Carneiro era um eminente professor da Escola de Minas de Ouro Preto e, à proclamação da República, fôra nomeado Membro da Intendência da velha Capital do Estado, em virtude de seu próprio espírito público. Resolveu o problema da água e esgoto da comuna. Como mantinha lá o afamado Colégio Mineiro, resolveu fundar, nesta terra de seus ancestrais e em sua própria Fazenda da Boa Esperança, em 1905, o Ginásio São José. A ele deve a região, o Estado e o próprio país um tributo inestimável como grande benfeitor, num tempo em que o ensino era privilégio de poucos. Pois o Dr. Fecas foi intimado, pelo Inspetor Federal, a suprimir o feijão no jantar dos alunos. O sistema era de internato e, como não havia estabelecimentos de ensino secundário próximos, os estudantes vinham das cidades vizinhas e, às vezes, de longes paragens, através de navios e estradas de ferro.
Tentando cumprir a ordem oficial, o Dr. Fecas esbarrou com a greve dos alunos: recusaram eles o jantar sem o prato costumeiro. Analisando as razões oferecidas pelos internos e atendendo a que o feijão era considerado um prato básico, alimento rico em proteína, substituto da carne no meio rural, deu razão aos estudantes e resolveu interpor um recurso para o Ministério da Educação. Justificou com o hábito inveterado da localidade, com o valor alimentício do produto, com a intervenção injustificável. O processo foi ao Consultor Jurídico do Ministério, que, após minucioso e douto estudo de leis discricionárias, opinou pela proibição oficial, resultando a denegação do recurso. Intimado da decisão, o Diretor do Ginásio não se deu por vencido. Julgava uma interferência indébita em sua cozinha. Recorreu do despacho do Ministro para o Conselho Superior da Educação. E homens eminentes puseram-se a estudar profundamente o delicado problema dos alunos do Ginásio ubaense. O professor Reinaldo Porchat, então Reitor da Universidade de São Paulo, encheu páginas. O Pe. Leonel Franca, filósofo de alto gabarito, deitou larga falação sobre o malsinado alimento servido no jantar dos estudantes. Seus votos ocuparam folhas do “Diário Oficial” da União. Naturalmente se pesquisaram os regimes alimentares dos sumerianos e egípcios, os cardápios dos gregos e os festins dos romanos, os banquetes dos castelões medievais e dos pobres oficiais das corporações, a abundância do Renascimento e a fome que fez explodir a Revolução Francesa. Para concluir, no entretanto, que os alunos do Dr. Fecas não podiam jantar feijão.
Notificado do veredicto do Supremo Conselho, num inconformismo que ralava pela convicção de cavaleiro andante, o Dr. José Januário Carneiro decidiu ir à autoridade máxima, S. Exa. o absoluto presidente da República, ditador Vargas, a quem encaminhou o último apelo.
Passaram-se dias de tranquilidade e feijão. Os alunos, satisfeitos, nem mais se lembraram do fato pitoresco. Eis senão quando, sem mais embargos, explode a bomba de efeito retardado. A última palavra se pronunciou: “Suprima-se o feijão”. A máquina enorme se movimentara, abalaram-se ministérios e jurisconsultos, mas a Ditadura, entrando pela porta da sala, atravessara toda a casa e atingira a cozinha, mandando esvaziar a panela de feijão...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Teodoro Sampaio


Teodoro Sampaio

Os jornais do tempo anunciaram um discurso de João Neves da Fontoura na Câmara Federal. Era o orador mais fogoso, quase incendiário, da Aliança Liberal. Deliberamos (eu e o José Campos, este depois professor de Direito e Presidente do Tribunal de Justiça de Goiás) ouvi-lo e subimos às “torrinhas” do Palácio Tiradentes. O afluxo era enorme. Mal nos debruçamos no parapeito, divisei um preto gordo, beiçudo, de pesadas roupas escuras e cabelos grisalhos, flanando entre os deputados e com eles convivendo.
— Deve ser, disse ao Campos, algum contínuo muito antigo e familiar aos representantes do povo.
Mas o pretão assentou-se. E, para maior surpresa minha, os deputados o cercaram e lhe ouviam com atenção. Não me contive:
— Que contínuo atrevido, Campos, assentado, enquanto os deputados estão de pé.
— Não conhece aquele? — perguntou-me um desconhecido que estava ao nosso lado. É o sábio Teodoro Sampaio.
E ante o meu espanto:
— A cidade de São Paulo, ao surgir a República, era uma comuna pequena e suja, de 80.000 habitantes. Teodoro Sanipaio, como grande engenheiro, foi nomeado prefeito. Fez novo traçado, abriu ruas e bairros, aumentou, em progressão geométrica, a luz e a água. Criou parques industriais. Realizou uma revolução na capital paulista. O Rio tem 2.500.000 habitantes. Pois São Paulo já tem quase 2.000.000. E se o Rio, apesar de Capital do Brasil, não abrir os olhos, São Paulo acabará igualando-o... A velocidade inicial continua em crescendo ininterrupto.
Olhei, de novo, o crioulão, entre seus pares, já com respeito e assombro, enquanto o vizinho teimava em acrescentar pormenores, detalhes novos em que mostrava seu profundo conhecimento dos representantes federais:
- É ele deputado pela Bahia, terra quase só de pretos. Um dos pontos altos, de sua representação. Profundo conhecedor da etnografia indígena e da língua tupi é dos maiores sabedores da arqueologia brasileira. Percorreu o país todo, estudando jazidas paleontológicas e inscrições rupestres.
Os elogios do gentil informante me obrigavam a fitar e gravar no cerebro figura tão desconcertante. Físico semelhante só encontrei mais tarde em pessoa tristemente famosa, o Gregorio do “mar de lama” do Getulio. Na ocasião, todavia, me lembrei de Luiz Gama, também grosso e rotundo, o heróico abolicionista das tribunas de júri, autor das “Trovas Burlescas” e de André Rebouças, o grande matemático, célebre engenheiro e dedicado servidor de Pedro II.
A sessão da Câmara perdeu o interesse para mim. Os discursos de Adolfo Bergamini de Maurício de Lacerda, de Augusto de Lima, do velho e barbado José Bonifácio e do próprio João Neves, não tiveram a mesma importância e significado para mim que aquele conhecimento, só de todo compreendido mais tarde, quando li obras do sábio Teodoro Sampaio. E aquela profecia do gentil incógnito a propósito do crescimento de São Paulo se cumpriu integralmente, com exagero e até com desregramento.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Sessão da Academia


A Sessão da Academia
A Academia Brasileira de Letras, sem embargo da pecha de reacionarismo que lhe movem os despeitados, é o mais alto cenáculo literário do país, a máxima aspiração de nossos intelectuais. Fugindo a uma aula, tipo “chata”, do Conde Cândido Mendes, resolvi assistir a uma sessão na Casa de Machado de Assis, Estava no prédio novo o Silogeu Brasileiro, oferecido ao insigne sodalício pela França, frente ao qual a estátua do fundador mostrava a austeridade do ambiente.
Entrei ali como num Templo. E enquanto Humberto de Campos lia a ata e o Barão de Ramiz Galvão procedia à leitura do “Relatório Anual”, cheio de frases feitas e em estilo demodè, estudava o meio e a fisionomia dos “imortais”. O Conde de Afonso Celso pronunciou uma oração no costumeiro sistema anedótico, tal qual as aulas que servia aos alunos da Faculdade.
Achei admirável, na verdadeira tonalidade acadêmica, o belo discurso pronunciado por Félix Pacheco, ex-Ministro das Relações Exteriores do Governo Bernardes e respeitado diretor do “Jornal do Comércio”.
A imponência de Alberto de Oliveira, então “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, a sua natural majestade, o aprumo e a longa cabeleira, não revelavam, de todo, seu inevitável desgaste físico. Falou do desenvolvimento da memória e contou que, nos fins do século passado, os literatos resolveram formar um clube na roça, perto de Niterói, para cultivar a retenção de fatos e coisas. Paula Ney e Guimarães Passos sobressaíram logo na arte de reter. A princípio, cada um recitava uma quadra. Depois, um soneto. Mais tarde, grandes trechos. E cada qual, nas declamações, se esforçava por testemunhar o progresso do método. Mas a maior surpresa que sentiu, ele, Alberto de Oliveira, foi quando, numa das sessões semanais, escreveu, de manhã, um soneto, decorou-o e o recitou para os sócios de Niterói. Mal acabou de declamar, Olavo Bilac acusou-o de plagiador, pois conhecia aquele soneto há muitos anos e até tinha o hábito de recitá-lo na infância. E repetiu, para a assistência ilustre, a poesia malfadada. As discussões se exasperaram. E só no fim do alarido, de ataques e defesas, Olavo Bilac confessou que bastava ouvir uma vez o recitativo para reproduzi-lo. E com o fato, o Clube se desfez...
Em verdade, quem mais me empolgou foi Coelho Neto. Orador mavioso e sedutor. Apesar de ter cento e tantas obras publicadas, de colaborar, semanalmente, no “Jornal do Brasil”, de ser considerado o estilista portentoso, ficou-me a imagem do palrador genial. Sua mímica era prodigiosa. As mãos falavam. Acompanhavam os gestos. Lembrou ele sua mocidade com Castro Alves, nas mesas de bar de São Paulo, escrevendo poesias aos eflúvios do liquido espumante. As noitadas de orgia dos moços da época. E suas mãos cortavam o ar, num arabesco evocativo, desenhavam figuras, subiam e desciam, rápidas como o pensamento, ou lentas como a emoção. A assistência se deleitava. Mas depois ocupou a tribuna um visitante português, Afonso Lopes Vieira, escritor de fama no tempo, em visita ao Brasil, numa linguagem sincopada, puxada nos rr, vocábulos cavalgando vocábulos, como um carro de rodas quadradas, na desarmonia do linguajar tipicamente minhoto...