terça-feira, 31 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 8


Adriana  Oliehoek


8

“Força, senhora! Quando vier a contração, faça força”!
   “Isso! Pode fazer força! Quando a contração for embora, pode descansar”.
   “Olhe, sinais de movimento”, mostra o médico às minhas amigas. “Agora, a criança gira em torno do próprio eixo”.

*

Com fúria a criança golpeava o lado interno do meu abdômen. Eu estava grávida de cinco meses.
   “Não gosta quando me deito de bruços?”
   “Está faltando espaço?”
   Eu me virava. Deitada de costas, apalpava a minha barriga desnudada. A criança ondulava debaixo das minhas mãos. Ela puxava a minha barriga para a esquerda, para a direita e, por alguns instantes, mostrava um rastro de uma mãozinha ou de um pezinho.
   “Ah! Ah!, está querendo brincar de pique”.
   “Tudo bem. Peguei. Sua vez!”, e dei uma tapinha onde o sentira pela última vez. A parte inferior do meu corpo ficou assustadoramente calma, assim como o mar antes de uma tempestade. Até que, de repente, ele emergiu como a baleia branca, Moby Dick.  A minha barriga entrou em distúrbio e ele me deu alguns golpes bem no lugar onde eu dera a tapinha.
“Ai!”, eu ria alegremente.


1951

O meu cabelo loiro está armado em duas enormes tranças que vão além dos meus ombros. Ou será que eu já os tinha cortado? A minha mãe está novamente doente e a minha irmã mais velha tem que cuidar da família grande. Escovar todos os dias o meu cabelo e fazer tranças é difícil demais para a minha irmã.
   “Que pena desse cabelo bonito”, diz o cabeleireiro, olhando no espelho e balançando a cabeça em sinal de desaprovação. Durante algum momento, ele hesita como se estivesse esperando um anjo que anulasse a ordem de cortar. Mas não acontece nada e, com uma cara de arrependido, corta as minhas tranças.
   Naquele período, porém, não são apenas as minhas tranças que perco. Dois pilares em que pousava a minha confiança infantil desabam: Papai Noel não existe e crianças não nascem de um pé de repolho roxo.
   Pela última vez avanço pelo tapete, no meio do salão de eventos.  Lá está o homem, vestindo suas roupas vermelhas, que durante anos foi a esperança de algum brinquedo. Desta vez, vou prestar atenção e não vou me deixar enganar pelas aparências. Chegando mais perto, vejo a pele maquiada e a barba mal colada que esconde uma boca se movendo. É verdade o que as minhas amigas contaram: “É um homem disfarçado”! 
   A cidade iluminada com lojas enfeitadas, aonde a minha mãe me leva todos os anos e que evoca em mim tanta admiração, não é uma prova da sua existência, mas um complô de gente grande.

O Otto fez a sua Primeira Comunhão e ganhou, como presente, um livro: ‘O Pão dos Anjos’. Eu adoro ler aquele livro. Ele trata da perseguição dos primeiros cristãos. Com a respiração presa em algum canto da casa ou, à noite, na cama, eu leio sobre a sua fé inquebrantável e o seu martírio: o jovem Estêvão apedrejado; a pequena Inês exposta nua e perfurada com um estilete; o São Lourenço na grelha ardente: “podem me virar, deste lado já estou assado”.
A verdade é sagrada, mas gente grande – descubro cada vez mais – tem os seus segredos. Já não me lembro da ordem em que aconteceu. Foi primeiro o Papai Noel que sumiu do palco? Ou foi o mito das crianças recém-nascidas? 

Dinah, que senta comigo na mesma carteira escolar, já tem seios. Um dia ela me conta sem rodeios: “A Tineke vai ter um nenê”.
   “Como é que você sabe disso”?
   Quando a minha mãe com o rosto arrepiado de frio e um xale envolto no pescoço traz um repolho roxo da horta para dentro da casa, procuro prestar atenção. Na sala, o único cômodo aquecido na nossa casa inclinada, ela prepara o repolho. Eu subo meio na cadeira e meio na mesa e aproximo os meus olhos o mais possível da tábua em que ela vai cortar o repolho.
   “Cuidado! Senão você vai perder um dedo”.
   Rapidamente puxo as minhas mãos para trás. Com grande interesse, olho como a minha mãe procura com a faca grande o lugar certo na folha externa arroxeada. Com a outra mão ela faz pressão contrária. Ela inclina o corpo levemente e, devagar, a faca escorrega pelas túnicas comprimidas, das quais mais tarde acho que são parecidas com o cérebro, mas que nunca me surpreendem com um novo irmãozinho. Este sempre aparece no berço quando a gente menos espera: de manhã, ao acordar, ou depois de uma visita demorada na casa da avó ou tia.
   “Ela está com uma barriga enorme.” Com a mão, a Dinah faz um meio círculo entre os seios dela e as coxas.
   “O que isso tem a ver”?
Eu conheço bem a Tineke. Às vezes, ela ajuda a minha mãe na limpeza geral, no início da primavera. Tudo na Tineke é grande e forte: os pés, as pernas, o quadril. Cantando, ela enrola o pesado tapete de fibras de coco e o carrega sem esforço nenhum para fora, onde o joga com um único movimento sobre o batedouro. Com batidas fortes, ela descarrega a sua força sobre o tapete. Bem feito, penso, pois ele machuca os meus joelhos, quando tenho que me ajoelhar à noite diante de uma cadeira para rezar a oração da noite. Grossas nuvens de pó envolvem a Tineke e o tapete. Mas a Tineke não se importa. A sua boca larga abre-se num riso franco, mostrando os seus dentes brancos.
   Ela só tem medo de ratinhos. Em pânico, foge em cima do telhado do quarto de despejo, quando o meu irmão Dirk solta um camundongo perto de seus pés. Em seguida, com as pernas abertas e soltando um grito de pavor, salta do telhado. A sua vasta cabeleira encaracolada e ruiva esvoaça como uma coroa em torno da sua cabeça. A corrente do ar infla a sua saia e concede-me ver de relance as suas coxas brancas e fortes e uma calcinha folgada. Nessas alturas, a Tineke já não está na escola. Ela só conseguiu chegar até o quarto ano.
   À noite, estou sentada à mesa com meus seis irmãos e a minha irmã. A minha mãe pega os pratos que nós lhe estendemos e serve batatas de uma grande panela que está no meio da mesa.
   “Sabe o que a Dinah contou na escola...”, tento sobrepor a minha voz ao barulho da vozearia. A mamãe distribui alface e põe um pouco de caldo de manteiga nas batatas em cada prato.
   “Não quero alface”, diz o meu irmão Ward. Ele não gosta de verduras e puxa o prato de volta no momento em que a minha mãe quer servir a alface. “Para com isso!” Mamãe pega as folhas que caíram na mesa e as põe no prato dele. “Eu quero que você pelo menos experimente. Depois você ganha um pouco de purê de maçã”.
   “Ela diz que os bebês saem da barriga da mãe. Esquisito, né?”
   Durante alguns instantes há um silêncio, mas, logo em seguida, todo mundo volta a falar ao mesmo tempo. Eu olho para o meu prato. Eu também não gosto de alface.
   Depois da janta, a minha mãe pergunta: “Jana, você quer ajudar lavar a louça?”
   Ouço um tom elevado no timbre da sua voz. Contém uma promessa e eu concordo sem fazer objeção. Pouco tempo depois, estou com um pano de prato nas mãos sob o teto baixo do puxadinho, onde fica a cozinha. Mamãe coloca um pouquinho de detergente na bacia de lavar louça e esvazia nela uma caldeira de água quente. Uma grossa camada de espuma forma-se em cima da água. Um cheiro fresco e picante se espalha pela cozinha. Com o extensor da torneira, ela esguicha um jato de água fria, causando um buraco redondo no monte de espuma. Pega a escova e ataca a montanha de pratos e panelas sujos. Antes que o primeiro prato esteja no escorredor, ela diz: “Crianças crescem na barriga da mãe, sim”.
   Eu pego o prato e enxugo-o com movimentos pouco práticos.
   “Você poderia ter sabido. Está na oração que rezamos todos os dias. Escute só: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor esteja convosco e bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”. Ouviu? “Bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”, Jesus nasceu da barriga da Maria”.
   “Oh!” Sinto-me envergonhada. Todo esse tempo eu não soube o que eu rezava. Da barriga da mãe? Da mesma maneira como acontece com os animais?
Eu sinto o cheiro de gatinhos recém-nascidos. “Tudo bem”, tranquilizo a gatinha que se contorce na caixa de papelão. “Está vindo mais um filhote”? Estou sentada no chão frio de cimento do quartinho de despejo. Faço um afago. Ajudo a secar um filhote que pego nas mãos com cuidado. Reparo os olhinhos fechados e olho para a boquinha cor-de-rosa que parece estar à procura de algo. Seguro o bichinho contra o meu rosto e sinto o ar de vida nova. É assim que nasce uma criança? Mas a barriga é a fonte daquilo que é considerado sujo e fedido. Isso é nojento. É impossível que a santa Virgem Maria faça uma coisa dessas. Maria era casta e nasceu sem pecado original. Ela nem precisou de ser batizada como todas as outras crianças. 
   “Também na minha barriga está crescendo uma nova criancinha”. A minha mãe solta um prato na bacia e levanta-se da sua posição inclinada.
   “Repare”, diz ela enquanto dá um passinho de lado.
   Eu olho para a parte de frente do seu corpo, coberto por um avental preto com flores amarelas e vermelhas que está esticado em torno do seu abdômen volumoso. 
   “Reze para que seja uma irmãzinha! Você já tem muitos irmãos”. Ela volta-se para a pia e pega o prato que deixara na bacia. Dois meses depois, nasce o meu irmãozinho Freek. (Continua...)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 7


Adriana  Oliehoek


7

“A taça, enfermeira”, chama o médico. Ele aplica o vácuo-extrator na parte posterior da cabeça do meu filho. O motor da aspiração canta suavemente no ambiente.
   “A senhora está bem assim?” pergunta o médico do alto.
   Estou de costas com os joelhos levantados na parte de cima da cama de parto. A parte inferior da cama foi desengatada e colocada de lado. As minhas amigas estão uma de cada lado. No outro lado do quarto, a enfermeira faz barulho com tampas de metal, comadres e fórceps. Alguém abre uma torneira e uma banheira se enche de água.


1950

Hannie tem a mesma idade que eu. O nosso aniversário é na mesma semana. Nem sempre estou em condições de brincar com ela, pois há muita agitação na pequena fazenda. A irmã que vem depois dela tem seis anos a menos. Depois nasceu uma criança a cada ano. Quando a Hannie tinha algumas semanas de vida, a mãe dela morreu afogada. Ela estava perturbada e pulou no canal. Felizmente, a Hannie tem uma madrasta muito carinhosa. Ela não tem nada de bruxa, como afirma a mãe da Trees.
   “Aquelas mulheres não se dão bem”, diz a minha mãe. Trees não pode brincar na casa da Hannie e a Hannie não pode brincar na casa da Trees. Portanto, eu brinco ora na casa de uma ora na casa da outra. A mãe da Trees quer saber tudo sobre a Hannie e a sua família. Uma pálpebra fica meio caída e o seu rosto mostra falsidade quando pergunta: “Quando você brincou pela última vez na casa da Hannie?” Ela me dá um pouco de medo. Talvez ela mesma seja uma bruxa. 
   Um dia, ela me conta toda a história. Ela mesma viu como o demônio, em forma de cachorro preto, pulou na frente dos cavalos que levavam o corpo da mãe da Hannie numa carruagem fúnebre para a igreja. Os cavalos se empinaram e quase se desenfrearam. Foi bem aqui, bem na frente da casa deles, na curva do caminho. “Ele veio para buscar a alma dela”, ela tem certeza. “Pois, mais tarde, quando o corpo estava no portal da igreja – suicidas não podem estar dentro da igreja e não podem ser enterrados em terra sagrada – os fiéis ouviram um cachorro latindo dentro da igreja. O sacristão foi ver e, num relance, ainda viu um cachorro preto correndo para fora. Era o demônio que veio buscar a alma dela”.
   Arrepio-me toda. Eu nunca ainda ouvira falar de Goethe, Fausto ou das superstições da Idade Média. Na minha imaginação, vejo a minha mãe pulando no canal e o demônio espreitando para levar a sua alma. Espero que a mãe da Trees esteja mentindo. A Trees também não é totalmente honesta. Um dia, quando estávamos voltando da escola para casa, ela me manda entrar na lojinha de doces: “Peça um pacotinho de chicletes e pode dizer para colocar na conta do senhor Weijers”. O dono da loja pega rapidamente de volta o pacotinho que já estava no balcão, quando repito as palavras dela. “Nada disso! Eles têm uma conta enorme que ainda não foi paga”. Eu levo um susto por causa do rosto zangado dele, como se eu fosse a ladra! Eu fujo da loja e quando, à noite na cama, me lembro de novo do ocorrido, volto a tremer de medo.

A Trees mora junto com seus pais na fazenda do avô. Tufos de cabelos brancos nascem na entrada do seu nariz e das suas orelhas. Ao andar, ele usa uma bengala com a qual, às vezes, tenta levantar a minha saia. “Não liga não”, diz a mãe da Trees, “ele está meio caduco”.
O pai da Trees é horticultor e quando o tempo está bonito construímos uma casa com as caixas destinadas a levar as hortaliças para o leilão. Tornamos o ambiente agradável com velhos trapos e cobertores e brincamos de pai e mãe. A mãe da Trees traz bolachas e refrigerantes. Certa vez, quando a casa estava pronta, as bolachas acabadas e a garrafa de refrigerante vazia, estávamos meio entediadas. “Que tal irmos para o sótão?’, eu proponho.
   Trees concorda. Entramos pelo fundo da casa, atravessamos a sala de jantar para a sala de estar e lá, atrás de uma porta, esconde-se uma escada larga que leva ao sótão. Um cheiro gostoso de maçãs, que foram colocadas ali no outono para secarem, vem ao nosso encontro. O sótão está praticamente vazio. Há alguns varais para pendurar roupa, no meio está uma mesa e, na parte inicial, há um armário enorme. Trata-se de um armário muito chique, ornamentado com entalhos e puxadores brilhantes. A parte de baixo tem três gavetas, mas essas nós já vasculhamos outro dia. Abrimos a parte de cima e encontramos dez pequenos quadros na prateleira debaixo. Colocamos um ao lado do outro no soalho. Parece uma fileira de pequenos caixões. A parte interna está revestida de renda branca e coberta por um vidro. No centro de cada um, com fitinhas cor de rosa ou azuis, há uma mecha de cabelo de criança falecida há muito tempo. “Leendert, seis anos. Marie, dez meses. Klaas, um ano. Pieternel, seis semanas. Arnold, três anos...”, leio. Todos eles irmãos e irmãs da mãe da Trees. Olho para as mechas de cabelo e, na minha imaginação, eu os rolo, um por um, nos meus dedos e os recoloco na cabecinha da criança que olha para mim com o rosto de um anjinho. Ao meu redor, no soalho de madeira do sótão, ouço os pezinhos deles correndo a passos curtos. Eles caem, levantam e enchem o espaço.
Quando não tenho nenhuma amiguinha para brincar, brinco com meus irmãos, Otto e Dirk. Revezando-nos, subimos com uma faca entre os dentes na árvore que fica atrás da nossa casa e, no ponto mais alto, onde a árvore ameaça envergar por causa do nosso peso, entalhamos as nossas iniciais na casca. 
   “Eu cheguei mais alto”, desafiamos uns aos outros, até que a mamãe põe fim à competição: “Dá aqui essa faquinha! Preciso descascar batatas e só falta alguém cair da árvore e quebrar uma perna.”
Procuramos as nossas diversões em outros lugares: subimos em pontes levadiças, fechamos – ou abrimos – os portões da eclusa. Nós mesmos determinamos a altura da água dentro da eclusa e mergulhamos até o fundo à caça de enguias. Caçamos passarinhos, peixes e rãs; escondemo-nos dentro dos montes de feno que estão secando nos pastos.
   Durante alguns anos, temos o mesmo tamanho. Tios e tias se demonstram surpreendidos: “Parecem trigêmeos!” E apontando para mim: “Essa é a Jana? Que falta de feminilidade!” Estou parecendo um menino. Não totalmente, pois, quando jogamos futebol no pasto ao lado da casa e eu marco um gol, ele não vale. 
   “Não vale”, gritam os adversários. “Ela é uma menina e só participa porque a gente está deixando”. Os meus gols não são motivo de alegria, mas de briga.
   Cuidados maternais, sim, são valorizados. Irrompe uma doença entre os coelhos que atinge principalmente os filhotes. Cada vez que o meu pai está diante da coelheira com um filhote nas mãos, eu suplico: “Dá para mim, pai. Eu quero curar o bichinho”. 
   Um sorriso tímido desenha o seu rosto: “Ele vai morrer, filha”. Eu não quero crer naquilo. Ele está vivo ainda! Seu narizinho puxa nervosamente e os seus olhinhos brilham. Só as patinhas de trás estão imóveis.
   “Não, filha; não convém”. Eu estendo a minha mão: “Por favor, pai?”.
   Ele não resiste às minhas súplicas e durante dias tento reavivar o bichinho com leite morno e bolsas de água quente. Por fim, não teve jeito. Tenho que enterrar o coelhinho, em algum lugar na horta. Certo dia – já se passaram algumas semanas - quero ter a certeza que ele morreu de fato e afasto a terra que o encobre. Durante alguns instantes, penso que o coelhinho ainda vive, pois a barriguinha está movendo! Mas, então, vejo que é apenas a pele dele e lá dentro está cheio de vermes, larvas e besouros.

Chegou o tempo das férias grandes. A minha mãe permite que eu passe uma semana na casa da minha tia Marie, a irmã da minha mãe, que mora na mesma aldeia dos meus avós. A minha mãe também é de lá. Junto com a minha prima Lena, andamos pela aldeia e fazemos compras para a nossa avó.
   Pessoas que eu não conheço abordam a gente: “Você é a filha da Cornélia?”
   “Igualzinha à mãe”!
   Lena é a filha mais velha. Ela tem um irmão mais velho e, pelo resto, só irmãs. O pai dela é um pequeno horticultor e toda a família tem que ajudar na horta para mantê-la funcionando. A minha prima chora. Ela não quer trabalhar todos os dias depois da escola, nos sábados e nas férias. “Eu odeio aquela horta!”, ela grita zangada. Para mim é uma diversão: colher vagens, fazer maços de flores e, de vez em quando, uma pausa no abrigo. Estou sentada entre caixas em que estão secando bulbos de flores e sinto o aroma de café num bule. Todos nós ganhamos um pouco de café e comemos um sanduíche. Junto com o meu primo, pegamos aranhas que colocamos, dois a dois, num pote de vidro tampado. Em seguida, seguimos atenciosamente a luta à vida ou morte das duas. As aranhas se combatem com as patas cabeludas até que uma fica vencida e se encolhe como algo insignificante.  
   No fim do dia, cansados e empoeirados, nadamos num lugar seguro no rio, o Does, que banha a horta. O meu primo parece um rato-d’água. Ele mergulha mantendo seus olhos azuis abertos e traz pedrinhas bonitas do fundo do rio, vindo à tona bem ao meu lado. “Venha”, diz ele, “eu te empurro para o outro lado do rio”. Sentada numa tábua larga, navego sobre o grande rio. Somos duas crianças felizes. A profundidade da água não nos assusta. (Continua...)

sábado, 14 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - 6



Adriana  Oliehoek
6

É quase meia noite. Quando se rompe a bolsa-d’água, o médico constata alguns centímetros de dilatação. Estou no meio de uma poça de água quente que difunde um cheiro meio adocicado. As contrações são mais repetidas e cada vez mais fortes. Gemendo, tento pôr em prática as aulas de ginástica. As minhas amigas me encorajam, me seguram e fazem uma leve massagem nas costas que parecem estar partidas ao meio.
   Não é dor. É violência. Violência primordial que começa no alto das minhas costas com um leve puxar e que, em seguida, se irradia pela região lombar, as nádegas e o abdômen até que todo o corpo inferior fica preso numa força de que é impossível escapar.
   A minha respiração se torna ofegante até que a dor se atenua. O descanso é de curta duração. Aí começa de novo: mais forte, ainda mais forte. Chuvas, trovoadas, tempestade. Um furacão de ira.
   “Quando você pensa que já não vai aguentar mais, chegou a hora”, explicaram as mulheres.  
   “Podem levá-la para a sala de parto”, diz uma voz masculina.


1950

No dique, em frente à fazenda de Juffermans, as primeiras campânulas brancas se anunciaram e na fazenda do nosso vizinho já nasceu o primeiro cordeirinho. O sol está ficando mais forte e o calor acaricia as minhas faces. Uma brisa fresca sopra pelos meus cabelos e espalha o cheiro de esterco e sementes germinando. As flores do salgueiro transformam-se em folhas delgadas. Não vai demorar muito e a primavera irrompe.  Crocos amarelos, violetas e brancos emergem da grama e, ao pé da berma, a água reflete as pequenas flores amarelas do tussilago e das quelidônias.
   A minha mãe deixa a porta da nossa casa torta totalmente aberta. Um ladrilho levantado evita que ela volte a fechar-se. No sótão, ela tira os cobertores das camas. Com os braços lotados, os seus pés procuram com cuidado os degraus da escada íngreme ao descer do sótão. Sempre quando chega a primavera, ela pendura todos os cobertores no varal que o meu pai esticou ao longo da vereda pela horta.  No ar excitante da primavera, eu e meus irmãos corremos entusiasmados por entre os cobertores coloridos. Brincamos de esconde-esconde e contamos até cem: “...Noventa e oito, noventa e nove, cem! Já vou!”
   Ao mesmo tempo, a mamãe arrasta colchões e carrega baldes de água com sabão. Ela tira as camas do lugar e serra pedacinhos dos pés das mesmas, tentando fazer com que elas fiquem niveladas no soalho inclinado do sótão. Quando papai chega em casa às cinco e meia, ele a encontra com o rosto avermelhado, teias de aranhas no cabelo e envolta por um cheiro de amônia. Juntos batem os cobertores e preparam o sótão para a noite.
À noite, quando estou na cama, sinto que o inverno se foi.

O cavalo, no pasto ao lado da nossa casa, corre de um lado para o outro, acompanhado por um potrinho. O chão turfoso ondeia debaixo dos seus cascos. A gata deu à luz cinco filhotes. Podemos ficar com dois, os outros o meu pai leva para a família Onderwater.
   “Por que a família Onderwater quer todos esses gatinhos?” Só muitos anos mais tarde, eu entendi que o sobrenome dessa família clássica da nossa aldeia significava ‘debaixo da água’ e que o meu pai afogava os bichinhos. Também as coelhas ganham filhotes, mas esses não vão para ‘Onderwater’. Perto do Natal, o meu pai os vende. Às vezes vivos outras vezes prontos para a panela. Ele corta o pescoço deles, faz um furo nos pés traseiros e pendura-os com dois pregos fixados na trave que segura o teto do quarto de despejo. Em seguida, tira a pele, abre a barriga e remove os intestinos.
Uma galinha acompanhada de oito pintinhos que piam sem parar cisca a terra à procura de minhocas. Outra galinha choca teve menos sorte. Todas as noites, uma ratazana rouba um ovo dela. O último ovo, já dando sinais de rompimento, fica ao lado do ninho. Cuidadosamente, descasco o ovo dando liberdade ao pintinho enrolado. Envolvo-o no lenço vermelho do meu pai e coloco-o numa latinha vazia de sardinhas sobre a pequena espiriteira.
   “O que você está fazendo?”, pergunta a minha mãe ao entrar na cozinha.
   “Papai deu licença”.
   “O seu pai não bate bem”.
   O meu pai aparece na porta e diz: “Pode jogar para o porco. Isso não vai dar em nada”. No momento em que eu penso que ele deve ter razão, uma das perninhas se move.
   Coloco o pintinho junto à galinha com os outros pintinhos. O meu pai acha que vai ser um franguinho. Eu espero que não, pois nesse caso ele ainda vai ser morto, como aconteceu com aquele leitãozinho. É verdade que era feio, mas eu gostava dele. Era o menor dos dezoito e para ele não sobrou nenhuma teta. O meu pai queria matá-lo, mas o Otto pediu para que ele e o seu amiguinho pudessem fazer isso. No quarto de despejo, o meu pai construíra um tanque onde minha mãe enxaguava as roupas. Pois bem, o meu irmão e o amiguinho deixavam o leitãozinho nadar no tanque até que afundasse. Aí, eles o tiravam para fora, esperavam um pouco até que ele voltasse a respirar e recomeçavam a brincadeira. Eles riam pra valer. Mamãe ficou furiosa e chamou o meu pai para mostrar em que é que deu deixar o leitãozinho com os meninos.

O meu pai fica pouco em casa. Quando acordo de manhã, ele já partiu para a fábrica numa cidade a seis quilômetros. Lá ele é fogueiro das fornalhas de fundição de ferro. Esse trabalho não é nada saudável, pois o calor é intenso. À noite, depois do jantar, ele procura ganhar mais um pouco de dinheiro nas fazendas, na vizinhança, onde constrói, com tijolos usados, pocilgas e escoadouros de esterco. Ele põe em prática a sua verdadeira profissão, pois, propriamente, é pedreiro, assim como o pai, o avô, o bisavô e outros antecedentes dele. Observando um muro, com um olho fechado, ele é capaz de dizer se ele está reto ou não. 
   O que o meu pai mais adora é caçar e pescar. Ele parece um daqueles germanos sobre quem se escreve nos livros de história na escola. Ele só não bebe nem joga dados. Com o seu barquinho a remos, joga redes afuniladas com o objetivo de pegar enguias. A minha mãe acha que enguias têm gosto de lodo, mas ela não gosta muito de peixe.
   No outono, ele vai caçar lebres com seu amigo. Meu pai sabe atirar muito bem e, na quermesse, ele acertou no alvo e ganhou um grande urso de pelúcia. Os meus irmãos maiores também sabem atirar e atiram em pardais. Eu não gosto de espingardas, muito menos quando eles apontam para mim e gritam: mãos ao alto! Aí eu começo a chorar.
   “Ora, não está nem carregada!” Com desprezo, eles abaixam a arma. Mas eu acho que nem sempre se pode ter certeza disso. Outro dia, o meu pai leu no jornal que um menino morreu, porque o seu irmão tinha atirado nele. E, pouco tempo atrás, a minha irmã atirou no próprio dedo. Bem feito! Talvez assim ela deixe de atirar nas andorinhas que pousam nos fios elétricos. 

A minha amiga Trees ganhou uma irmãzinha; na casa da minha outra amiga, Hannie, também ganharam um nenê, um menino, e na fazenda do Sr. Borst há duas menininhas no berço. As mães acamadas se deixam mimar com pedaços de bolos e bifes suculentos. “São as nossas férias anuais”, dizem elas. Eu não acho graça nenhuma passar as férias na cama. Nas férias, sempre vou passar uma semana na casa da tia Marie, onde posso brincar com a minha prima Lena.
   Neste ano, nós não ganhamos um bebê. No berço está apenas um monte de roupas que precisam ser consertadas. A minha mãe tem que passar uns dias no hospital e, por isso, eu vou ficar na casa da Trees. A mãe dela concordou e a Trees ficou contente. Ela tem alguns anos a mais do que eu, mas na vizinhança não há meninas da idade dela. Eu tenho que dormir com ela na mesma cama. Quando estamos debaixo dos cobertores, ela tira a calcinha, pega a minha mão e a coloca entre as pernas dela. “Está sentindo?” diz. “Está sentindo?” Parece a barba do meu pai quando está crescida. Em seguida, ela conduz a minha mão para a parte superior do corpo e a cavidade da minha mão se enche com carne mole tendo no meio o mamilo, duro como uma borrachinha.
   “Os meus seios estão crescendo”. Em seguida, ela passa a mão dela no meu corpo, mas, felizmente, não há nada de errado comigo. Fico feliz quando a minha mãe volta do hospital e eu posso retornar para casa. (Continua...) 

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 5


Adriana  Oliehoek
5

Chegamos à conclusão que seria melhor as amigas irem comer algo num restaurante perto do hospital e eu prometo tirar uma soneca.
  
Vejo a mim mesma numa praia deserta, junto à linha da água do mar. As ondas avançam com grandes cristas brancas em minha direção. Chegando perto de mim, fazem uma reverência com grande estrondo e retiram-se, sussurrando baixinho.  Junto aos meus pés, ficou um pacotinho comprido. É uma rosa de um vermelho profundo, embrulhada em papel celofane.  Apanho a rosa e, surpresa, a seguro contra o meu peito. O mar me deu uma rosa.
 O mar é o meu amor, o meu amante. Ele me chama com sons altos, baixos e persuasivos, quando me deito de costas na areia. O mar me vem buscar. Investe sobre mim com ondas agitadas. Rodeia-me acariciando-me suavemente e, marulhando, penetra dentro de mim...


1950

Limpeza é o nosso bem supremo. No sábado, todas as crianças são banhadas, uma após outra, numa grande tina com água quente. Na noite anterior, o papai já colocara no chão, num canto da cozinha, o fogareiro de querosene com cinco pavios de oito centímetros de largura. Por cima dele, coloca um suporte de ferro fundido, capaz de aguentar bastante peso. Em seguida, enche o caldeirão até a metade com água fria. Pega nas alças e retesa os músculos. Rugas grossas surgem no seu pescoço. Com os dentes cerrados, pé ante pé, carrega o caldeirão até o fogareiro e solta um grito ao colocar o caldeirão pesado sobre o suporte. Com ajuda de uma caçarola, acaba de encher o caldeirão com água.
   Sábado é também o dia em que posso sentar um pouco no colo da minha mãe. Com minhas pernas presas entre as pernas dela, ela corta as unhas dos meus dedos e limpa os meus ouvidos com um palito de fósforo enrolado num tufo de algodão.

A minha mãe é católica rigorosa. Todos os dias, antes de irmos para a escola, temos que ir à igreja. No domingo, ir à igreja é uma obrigação sob pena de pecado mortal. A alma fica preta e se alguém assim se apresentar na porta do céu será mandado diretamente para o inferno e terá que queimar eternamente no fogo. O meu pai é menos rígido: “É melhor não pensar muito nessas coisas”, diz ele para mim, “senão você fica louca”.
   Acho que o meu pai está com razão, pois, na escola, a irmã Brigita fica com muita raiva durante a aula de religião. Ela fica no meio da sala de aula e conta sobre o mistério da Santíssima Trindade: “Um Deus e, mesmo assim, três pessoas: o pai, o filho e o espírito santo. Ninguém consegue entender isso; nem o santo e sábio Agostinho conseguiu desvendar esse mistério”.
   Eu, porém, não acho difícil e penso no exemplo que o padre deu numa aula de catecismo com três fósforos acesos que juntos têm uma só chama. Levanto a mão: ‘Eu entendo’.
A irmã Brigita bate furiosamente com o punho na sua mesinha e grita: “Ninguém, ninguém é capaz de entender isso e logo você acha que pode entender!” Eu levo um susto e penso que talvez seja melhor não entender. Não gosto mesmo da escola. Nem sei por que tenho que ir. Já sei ler e quando for grande vou ser mãe.
O melhor da escola é quando o sino toca às três e meia, para avisar o fim das aulas. Principalmente no verão. Aí, eu corro para casa. Tiro os meus sapatos e as meias e, descalça, corro pelo pasto que se estende atrás da horta. Quando estou bem longe de casa, deito-me de costas e tiro do bolso do casaco os pedacinhos de vidro que achei no caminho para casa. Eu adoro vidro, principalmente quando é colorido. Durante minutos fico olhando através de um pedacinho. Quando o vidro é vermelho, o mundo inteiro torna-se vermelho; menos o que é vermelho, pois isso se torna preto. Não é gozado? Quando o vidro é azul, tudo em torno de mim fica azul. Eu viro o vidro em todas as direções, deixando a luz passar dos diversos cantos. Com vidro consigo fazer um pouco de mágica. Com o fundo de uma garrafa consigo até fazer fogo sem usar fósforos. Mas, não gosto muito disso. Os meus irmãos sim. Com o foco da luz eles queimam as mãos uns dos outros, para ver quem é que aguenta mais tempo. O que eu acho mais sensacional do vidro é que você pode olhar através dele. Maravilhoso! Principalmente, porque vidro na verdade é areia, mas quando eu ando na praia não posso olhar para o outro lado do mundo.
As minhas pálpebras se tornam cansadas e pesadas.
'Abracadabra', agito um pedacinho de vidro pelo ar, 'eu transformo tudo em vidro'.
Agora não existem mais mistérios. Tudo é transparente: a igreja, o convento e as casas. Num mundo de vidro, as pessoas não usam roupas. Elas vivem nuas. Sinto que fico um pouco excitada e com sentimentos de culpa. Como se fosse algo errado, olhar para a nudez dos outros. Não entendo bem por quê. A mesma coisa eu senti quando estava olhando pela fresta do sótão para a minha mãe.
   Em algum lugar, em uma das casas de vidro, mora o meu amiguinho Simon. Ele está brincando sozinho, no seu quarto, com um trenzinho de vidro. Quando ele me vê, ele se levanta apressadamente. Acena para mim e faz um gesto com a mão para eu me aproximar: “Vem brincar comigo?”
Tiro as roupas e sinto uma leve tontura ao ver a minha pele branca e vulnerável. Segue uma forte excitação. Livre como um pássaro a voar abro os braços no ar. Giro algumas vezes em torno do meu próprio eixo. O vento acaricia a minha pele, faz cócegas nas minhas axilas e entre as minhas pernas.
   “Uau...!” Com um salto enorme aterrisso no seu quarto. Simon executa uma verdadeira dança de guerra. Também ele está excitado e o seu bilauzinho está empinado como um pequeno revólver pronto para atirar. Olho para isso com o rosto levemente inclinado.
   “Você não vai fazer nada comigo, vai”?
   Ele ri. “Claro que não, ainda sou muito pequeno”.
   A resposta me tranquiliza. Só quando as pessoas forem mais velhas, vou ter que tomar cuidado. Eu me proponho a ficar criança para sempre. (Continua...)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 4

 Adriana Oliehoek


4

Duas fitas largas estão atadas na minha barriga. Um aparelho ao lado da cama conta as pulsações do bebê e mede a força das contrações.        “Contrações fortes”, diz a enfermeira.
    Parecem cólicas menstruais, acho eu.
   O ginecologista de plantão vem dar uma olhada. Ele põe um par de luvas finas. Os seus dedos indicador e médio apontam como um revólver para frente: “Senhora, vamos fazer um toque”. Ele separa as minhas pernas e, pressionando suavemente, constata que ainda não se pode falar de dilatação, enquanto quase compartilha comigo a cama. Mas o colo do útero está se preparando.
   “Ainda está no começo? Bem, então vou voltar para casa. Vamos, gente!” Preparo-me para levantar.
   “Não, senhora, isso não é prudente!” O médico tira as luvas levemente ensanguentadas. “Levando em consideração a sua idade e a presença de um grande mioma, é melhor ficar. Vou dar um sonífero para a senhora dormir um pouco. As senhoras acompanhantes podem ir para casa. Ligaremos para elas quando estiver na hora”.
   “Não, senhor, nós vamos ficar!”, dizem elas.
   “E eu não fico sozinha aqui!”
   “Mas ela deve descansar, ela deve estar bem descansada, quando o parto começar de fato”, persiste o médico.        


1949

Estou de volta em casa. Cheia de orgulho mostro as blusas que a tia Door e Nellie tricotearam para mim. Uma é vermelha com verde e a outra cinza com vermelho. Nos meus braços, carrego um boneco de pano com uma cabeça dura. O crânio é tão calvo como o do meu pai, que eu admiro muito. O nome do meu boneco é Kala.
  
Enquanto subo a escada para o sótão, canto na melodia da canção “Lili Marleen”:
   “Kala, Kala, Kala, vamos subir?
   É a nossa cama que a gente vai curtir.”
  
   Giro a maçaneta de madeira da porta que separa a parte feminina do sótão do lado dos meninos. Na cama, com a cabeceira encostada contra o telhado inclinado, dormimos eu, a minha irmã e Kala. Às vezes, às escondidas, levo também a gata. Quando a minha irmã, uma hora depois, vai deitar-se, ela grita: “Mãe, ela levou a gata para a cama”. Dá um chute e o pobre bicho voa para fora da cama. Com as costas arcadas e o rabo em pé a gata procura a saída.
   Esta noite, não levei a gata; só o meu boneco. O sol está baixo e desenha uma história de folhas e galhos pretos no papel de parede da divisória. Tiro as minhas roupas, visto a camisola e, com um movimento rápido, solto as tranças pesadas. Sacudo a cabeça e os meus cabelos espalham-se num leque amplo. Como isso é gostoso! A minha cabeça parece um carrossel e a tensão no meu pescoço desaparece.
Antes de deitar-me, fico sentada durante algum tempo, com os joelhos dobrados e os braços em torno das pernas e, enquanto o meu queixo descansa na fortaleza que assim construí para mim mesma, os meus olhos seguem os movimentos bizarros na parede.
“O que vamos fazer esta noite, Kala? Vamos viajar?” Eu consigo imaginar a mim mesma viajando para qualquer lugar. Leis terrestres, como a da gravidade, eu supero deixando o meu corpo na cama. Imaterializada, juntamente com o meu boneco, viajo pelo mundo inteiro. Certa noite, fizemos uma visita ao Grand Canyon, no faroeste dos Estados Unidos. Certa vez vi uma estampa dele na casa do meu avô e ele me contou a respeito.
“Olha”, explico a Kala: “Muitos anos atrás, ainda antes que os índios moravam aqui, isso era um mar”. Segurando-a no meu colo, estou sentada na plataforma norte do Grand Canyon e observo o desfiladeiro imenso. Atrás de mim, o sol vai ganhando o céu americano e colore os rochedos no outro lado do desfiladeiro de vermelho. Estendendo-se sobre muitas milhas, altos picos de montanhas irrompem a cobertura de nuvens. “Ali ficam os Prados Eternos”, mostro com o dedo, “lá correm Pena Branca e Olho de Águia nos seus cavalos velozes como o vento. Eles caçam búfalos. Quando você morrer, Kala, você vai para lá. Uma carruagem preta puxada por dois cavalos levará você para lá. Eu mesma vi. Os músculos dos cavalos se retesam e, devagar, a carruagem põe-se em movimento. Matraqueando, os raios de madeira giram em torno dos eixos das rodas até a carruagem desaparecer de vista”.
   Transformo as minhas mãos num binóculo e olho fixamente nos flocos infinitos de névoa, mas não consigo ver, em lugar nenhum, a minha irmãzinha natimorta e os meus irmãozinhos falecidos. Vejo grandes aves de rapina pairando a meio caminho dos rochedos do desfiladeiro. Talvez sejam águias, urubus ou falcões. Elas estão à procura de refeições apetitosas no fundo do precipício. As suas sombras pretas deslizam sobre as copas das árvores, sobre os pastos e sobre a cintilação do rio.
Cortando os ares noturnos com Kala, colho edelvaises nas montanhas suíças e balanço na corda bamba no Circo du Soleil, no Canadá. Não preciso de bagagem, dinheiro e meios de transporte modernos. É verdade que sou pequena e tenra, mas no meu modo de pensar sou todo-poderosa. Mas tudo tem o seu preço. Certa noite, quando estou sozinha na cama com a minha boneca, a pergunta atinge o meu cérebro como um relâmpago: “Eu existo de verdade ou eu apenas penso que existo?”
   Só anos mais tarde, eu aprendo na faculdade que para Descartes era suficiente perceber que ele pensava e que, por isso mesmo, existia. Mas agora sou pequena ainda e, com medo, conto os botões da minha camisola: “Existo sim, existo não, sim, não...” Sinto um suor frio. Preciso de certeza. Cuidadosamente, assim como Noé soltava a pomba para procurar terra seca, as minhas mãos vão à procura de mim mesma. Cautelosamente, elas apalpam o meu corpo, escorregam por minhas coxas, sentem a covinha quente na minha barriga, a caixa torácica e, finalmente, escondida numa vasta cabeleira, a minha cabeça. Graças a Deus, ela não está solta no travesseiro, mas está ligada ao resto. Solto um suspiro profundo: quando a gente se sente a si mesma, então não é verdade que a gente existe? Não quero pensar sobre a questão se eu talvez apenas pense que estou sentindo a mim mesma. Em seguida, escondo-me no meu sono.
         No dia seguinte, saio sorrateiramente da cama onde a minha irmã continua dormindo. Nos dedos dos pés, esgueiro-me pela porta que dá acesso ao sótão dos meninos e deito-me na cama com os meus irmãos. Não na cama perto da porta, onde dorme o meu irmão mais velho. Senão ele vai fazer de novo aquilo. Outro dia eu me enfiara debaixo dos cobertores, aconchegando-me pertinho dele, e ele fizera cafuné nas minhas costas. Mas de repente senti o pênis dele, procurando um caminho pela cava da minha calcinha. Estava duro e quente, fazendo pressão nas minhas nádegas. Permaneci imóvel e não tinha coragem de dizer: “Não faça isso! Isso é proibido!” Pois, em outras circunstâncias, ele sempre foi muito bom para mim. Mais tarde, contei o acontecido à minha mãe. Mas me arrependi de ter falado. Ela olhou muito feio para ele e o meu irmão, com rosto vermelho, lançou um olhar bravo para mim.
(Continua...)