sábado, 28 de maio de 2011

O Pôquer

O jogo de pôquer foi, sempre e sempre, a distração, ou vício, dos antigos donos de Ubá. Jogava-se diariamente na casa do senador Carlos Peixoto de Melo, ou na de seu cunhado, Cel. Camilo Soares de Moura. Um dos “meninos”, que conheci octogenário, conservou esse hábito até morrer, com mais de noventa anos: era o deputado Francisco Peixoto Soares de Moura, chefe do “Partido Capivara”, de Rio Pomba, adversário valente do “Partido Jagunço”, famoso pela bravura no tempo em que os Soares empolgaram a região (Carlos Soares em Ria Branco; Camilo Soares Filho em Ponte Nova; Raul Soares em Ubá e Rio Branco). Rio Pomba não podia fugir a tal domínio.

Os jornais da Capital, na época, glosavam sua mestria no jogo do pôquer. Enfrentava e vencia o senador Antonio Azevedo, considerado o mais hábil jogador do país.

Determinado dia, o Dr. Lauro Solero, já professor da Faculdade de Medicina, convidou-nos para jogar pôquer, em que tomaria parte seu avô, o nomeado Francisco Peixoto, na casa então de nossa propriedade. Assaltou-nos viva curiosidade, ao lado de certo e procedente temor. Como, entanto, se estabelecera que seria diversão de perder pouco, com aprazimento aceitamos o convite e fomos.

O método do Dr. Chico Peixoto, percebemos logo, era o de distrair os parceiros e contar histórias. Jogava palrando. E, ao distribuírem-se as cartas, começou:

— Quando o Imperador D. Pedro II visitou Ubá, para inaugurar a E. F. Leopoldina, ocupava eu a Promotoria de Justiça. Hospedou-se ele na residência do Dr. Cesário Alvim, Fazenda da Liberdade.

E ao perceber meu espanto, ante fato tão remoto, acrescentou, pronto:

-Era eu, na ocasião, Promotor muito moço...

Ao primeiro que abriu o jogo, ele dobrou, mas nós, que tínhamos uma trinca branca nas mãos, fugimos ante a fama do apostador. E ele continuou tranquilamente:

— Pedro II era um homem irrequieto, agitado, não parava, mosquito elétrico ou torniquete hidráulico, ao oposto do retrato que lhe traçam alguns historiadores. (Em verdade, a história fez tudo para aproximá-lo do bonachão D. João VI, quando era digno filho do endiabrado Pedro 1).

O segundo parceiro abre o jogo, mas recebe, no estalo, a dobra do perito conhecedor do pôquer...

E ele, imperturbável:

— Tão apressado era Pedro II que, terminada a festa principal, embora constassem do programa várias solenidades, inclusive um baile pomposo à noite, mandou logo prender e ajaezar os cavalos, categórico:

— Vamos para o Rio Pomba, continuando a excursão. E as alimárias foram prontamente preparadas. Nós, autoridades, resolvemos acompanhar a comitiva imperial até a cidade vizinha.

Novamente um dos parceiros abriu a parada e de novo ele dobrou, sem interromper a exposição:

— Na estrada, o Ministro do Império, Dr. João Alfredo Correia de Oliveira, me perguntou:

— Sr. Promotor, o Juiz de Direito de Ubá é bom magistrado?

— Sr. Ministro, respondi, o Dr. Antonio Cesário seria um excelente Juiz em qualquer cidade de Minas. Em Ubá, é claro, sendo o seu irmão, o Dr. Cesário Alvim, o chefe político, não pode ser imparcial.

— E por que, voltou João Alfredo, o Promotor, sabendo disso, não denunciou o fato ao Ministro?

— Pelo mesmo motivo, respondi, que o Sr. Ministro do Império, agora tendo conhecimento do fato, não vai tomar nenhuma providência!

E dobrou no jogo, mais uma vez...

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Juiz Azevedo Corrêa

Acabo de receber, acompanhado de linda carta do Prof. Azevedo Corrêa Filho, o primeiro livro de versos de sua filha Terezinha Corrêa Moreira — “Poemas”. Senti-me transportado, ante o lirismo indelével da poetisa, à época espiritual da Grécia permanente, nos tempos de Anacreonte e Safo, ou ao “Jasmim das Carícias” da Universidade de Sankoré, em Tombuctu. Vieram-me à memória as “Preces no Tempo da Peste”, do rei hitita Mursilis II e os versos de Enil, a princesa babilônica do ano 2200 AC. Recordei-me dos “rubaiyats” de Omar Khayyan e da famosa canção romana PER VIGILIUM VENERIS. E transpus meio século de vida e de lutas e me encontrei, circulando, a passos lentos, o Jardim S. Januário, em companhia do Juiz José da Mota Azevedo Corrêa, discutindo temas literários e bebendo lições de letras e direito.

Acabara, o ilustre magistrado, irmão do famoso poeta do “Mal Secreto” (que não gostava de ser chamado o “poeta das Pombas”), terminara o Juiz ubaense os dois volumes de seus “Comentários ao Cod. Proc. Civ. Mineiro” (que destino teve essa obra?) e eu, como companheiro inseparável de seu filho Azevedo Corrêa Filho, colega de Ginásio, de Faculdade e de tertúlias, estava amiudadas vezes em sua casa, que pertencia, aliás, à nossa família.

A poesia habitava a alma e o sangue dessa GENS privilegiada. A delicadeza, a sensibilidade, a emoção, transpareciam em seus mínimos gestos. Pai e filho versejavam com tamanha naturalidade, que se diria ser o verso sua linguagem natural.

Havia eu decorado um soneto do Dr. Azevedo Corrêa, da “Galeria Romana”, sobre Mário

“De simples camponês à louca orgia assoma
da vida; e fez se erguer às altas posições,
Mário — o triunfador dos cimbros e teutões,
conclamado, por isto, o “Fundador de Roma”.

“Sete vezes assoma ao Consulado, e toma,
Na derradeira vez, cruéis resoluções,
afogando no sangue as cegas multidões,
massacrando os rivais que o seu rancor não doma”.

O outro filho, mais moço, Raimundo Corrêa Sobrinho, é um belo espírito e também vate de alto apreço, autor da “Oração aos Aflitos”, da José Olímpio Editora.

Quando pleiteei o ingresso na faculdade de Direito, ainda no Catete, Max Fleius, então secretário e consagrado historiador, quis barrar-me a matrícula. Havia um “Souza” em meu nome, que pouco uso, para atrapalhar a escrita. Deu-me o Dr. Azevedo Corrêa um atestado concludente e tudo se harmonizou.

Sempre acreditei que o Dr. Azevedo Corrêa fora um dos nomes importantes de nossa literatura. Mas aquela simplicidade, que raiava pela timidez, impediu que sua produção intelectual se tornasse conhecida.

Padeci, com seus filhos, a morte, em 1928, desse ilustre e humaníssimo varão, na mesa de operações de um Hospital juizdeforano.

Lendo, agora, os “Poemas” de Terezinha Corrêa, comprovei que a sensibilidade e o coração se perpetuam, na osmose da hereditariedade inarredável, como força cíclica das gerações sucessivas.

sábado, 14 de maio de 2011

O Fabuloso Peixoto Filho

Certa feita, Agripino Veado fora jantar em nossa casa. Com aquela palestra de encher a sala, lembrava os tempos de infância nas ruas da cidade, a energia e severidade do velho João Gomes Veado, o duro período de tipógrafo na “Gazeta de Ubá”, as espertezas para engodar o Juiz de Direito, Dr. Hermenegildo de Barros, a quem fora secretariar, sendo por ele nomeado Escrivão de Crime da comarca e depois Escrivão de Paz de Sapé. Agripino acabava de aposentar- se como Secretário do Supremo Tribunal Eleitoral, já aposentado, pois, como advogado da Prefeitura do Distrito Federal. Que memória prodigiosa! As figuras da cidade pequena corporificavam-se, renasciam de sua palavra mágica e estavam vivas e se movimentando, num rascunho agitado do ironista perfeito. Quando, no entretanto, lembramos a sua ida para um Tabelionato de Muriaé, antes ainda de sua formatura em direito e de se tornar o causídico famoso, Agripino ficou sério.
— Devo-o, disse ele, a Peixoto Filho.
Lembrou a estreia famosa de seu companheiro e mestre na Câmara Federal, no pedido de licença para processar Alfredo Varela, quando, com um improviso, foi logo considerado o maior orador político do país. O lema da Bandeira de Minas — Libertas quae sera tamen — estava sendo recordado por Barbosa Lima para encantoar os mineiros, mas Peixoto Filho lembrou-lhe que a liberdade republicana fora conseguida e, para conservá-la, nós a queríamos sob a lei, alterando o lema para “sub lege libertas”.
O antigo líder da Maioria e antigo Presidente da Câmara Federal, o conhecedor profundo de Platão e Bergson, o ledor impenitente das revistas de Paris, Londres e Roma, o frequentador assíduo das livrarias e palestrador invejável das literárias, o orador gigante, o Peixoto Filho estadista, surgia sob outras roupagens no seio da cidade provinciana, bem mais modestas, mas não menos expressivas. Era o advogado invejável e o jornalista completo, inteligente, culto e doutrinador, dirigindo uma folha em Ubá e outra em Rio Branco, com colaborações frequentes das jovens Leocádia e Regina Godinho.
Fascinou-me, sobremodo, na narrativa penetrante de Agripino Veado, ao traçar o retrato de corpo inteiro do glorioso ubaense, a fagulha de gênio que o animava.
— Éramos, explicava Agripino, éramos dois os secretários de Peixoto, que em regra não redigia: eu e o Onofre Andrade. Ele ditava, ao mesmo tempo, umas razões criminais para mim e umas razões cíveis para o Onofre, com uma rapidez que mal acompanhávamos seu raciocínio e suas palavras. Ao terminar assuntos tão diversos, nada havia a acrescentar ou corrigir. A forma castiça, a linguagem rica, o argumento incisivo e convincente. Onofre posteriormente me confirmou o fato.
Era Onofre Andrade, professor da Faculdade de Odontologia de Juiz de Fora, proprietário de um laboratório de produtos dentários, cuja produção não vendia no Brasil, pois era integralmente remetida para os Estados Unidos, quando secretariava Peixoto Filho, mero lançador municipal de Ubá.
Enquanto Agripino Veado recordava a figura ilustre com admiração quase religiosa, voltava-me o desejo nunca satisfeito, de conhecer o “Diário” que Peixoto deixou e o livrinho que escreveu: “Reflexões após 14 meses de minha queda política”...

domingo, 8 de maio de 2011

Convicções do Presidente

Ninguém que o tenha conhecido de perto, negará a formação carismática do Presidente Artur Bernardes. Aquele ângulo de doutrinador, aquela confiança em si próprio, aquele idealismo que colocava a Pátria acima de tudo, em todos os momentos, advinha, como acentuou Afonso Arinos em “Um Estadista da República”, de “uma fé quase religiosa na missão republicana que lhe tinha sido atribuída por Deus ou pelo destino”. Sempre preocupado com o futuro do país, foi, indubitavelmente, pela pureza e sinceridade de convicções, a maior figura de patriota do Brasil, depois de 89. A inquebrantável confiança na justiça e na moral que adotou, levava-o a crer na inarredável vitória final das lutas que sustentava, servido por qualidades excepcionais, não sendo a menor a pasmosa memória fisionômica. Podia ser apresentado, em meio à multidão, a determinada pessoa uma vez, que, passados anos, a reconhecia e chamava pelo nome. Registrei vários fatos dessa espécie.


Mas o caráter messiânico de sua formação é inegável. Nos acontecimentos menores, via o dedo superior a guardá-lo desde o início da carreira. Quando simples Agente Executivo de Viçosa, foi chamado pelo Governador, partindo para a Capital. Quando se preparava, no hotel belorizontino, para a audiência marcada em Palácio, notou que esquecera, em Viçosa, as abotoaduras da camisa de punhos engomados. Era uma vez a sua apresentação, o contato com o governante, a entrevista que lhe abriria o caminho futuro. Desanimado e contrafeito, puxou, lentamente, a gaveta da mesinha a que se abancara. E, maravilha, estava ali um par de abotoaduras deixado por um hóspede desatento. Era o sinal mais evidente da missão que lhe estava reservada, através de uma longa vida tempestuosa.

Tive demonstrações numerosas dessa convicção robusta, mas uma delas, sobretudo, me calou no espírito.

Estávamos no limiar de uma das campanhas desiguais, em que o governo tem tudo e a oposição nada.

O Baião, aquele símbolo de dedicação extremada ao Presidente e a quem estava entregue a sede do partido, dirigiu-se a Bernardes, num tom de súplica:

— Presidente, é necessária a sua volta para Minas, pois com sua presença o PR crescerá e nós nos tornaremos maioria.

Bernardes relanceou o olhar para o espaço. Lembrou, ao certo, a luta brutal em que se empenhava. O ditador Vargas mandara ao Congresso um projeto entreguista do petróleo brasileiro. E ele, com a autoridade imensa do seu passado e de sua experiência, conseguira transformá-lo em projeto nacionalista. Voltando-se, rápido, para o fiel auxiliar:

— Não posso voltar, Baião, porque se eu sair do Rio, eles me vendem o Brasil!

Prevenido contra a imprensa, como vítima de campanhas insidiosas e desmoralizantes, era sobretudo cauteloso com os representantes do jornalismo, que, para ele, eram os “anjos decaídos”, sempre a farejar escândalos e sensacionalismo. Lembro-me de um dia em que estava a conversar com o Presidente, na Rua Valparaíso, 40, quando ressoou o telefone. Era um jornalista de ‘O Globo’, perguntando se Bernardes estivera, na véspera, à tarde, com Eurico Dutra em Palácio.

— Pode desmentir a notícia pelo seu jornal, informou. Não estive, ontem à tarde, com o presidente Dutra.

E para mim, sem perder a austeridade:

Esses jornalistas são muito bisbilhoteiros e enredadores. O Presidente me ouve, mas, como não tem ideias próprias, ouve outros depois e às vezes fica com a última opinião. Ele me perguntou se estive com Dutra à tarde. Não. Estive de manhã.