sábado, 31 de julho de 2010
KALA KALA (O pássaro que voa)
segunda-feira, 26 de julho de 2010
KALA KALA (O pássaro que voa) 2
Sábado de manhã acordei às seis horas. Durante a noite tenho que me levantar no mínimo duas vezes para urinar. Nove meses de gravidez me transformaram num bonequinho Michelin com sutiã número 46. Neste espaço de tempo, o meu bebê desenvolveu-se de uma única célula fecundada num ser humano, composto de maneira complexa: uma evolução de nove milhões de anos. Quem é capaz de lembrar-se da sua existência unicelular? Meu filho deve pensar, como eu, que ele sempre existiu.
Lentamente giro em torno do meu eixo e rolo para a beira da cama. Enquanto os meus pés procuram o chão, empurro com as mãos o meu corpo para cima. Arfando pelo esforço, fico sentada e olho para a minha barriga que está apoiada nas minhas coxas. A pele branca está tão esticada que parece querer estourar.
Com os pés numa posição de dez para as duas, eu procuro equilíbrio e levanto-me com cuidado. Cambaleando, dirijo-me ao toalete. A dor nas costas é insignificante, como também as puxadas nauseantes à esquerda e à direita no meu abdômen. Um alívio é a micção que não parece ter fim. Nesse momento, vejo a segregação rosada na minha calcinha.
1947
Num belo dia, em maio, o meu pai carrega uma carroça com todos os pertences da casa, incluindo as galinhas, os coelhos e o gato. Ele pega nas rédeas e sobe na boleia. “Opa!”, diz ele para o cavalo.
Eu tenho cinco anos. Deixamos a casa onde cinco irmãos, a minha irmã mais velha e eu mesma nascemos. À tarde, saindo da escola, vou para a minha nova casa, segurando a mão da minha irmã mais velha. O céu está azul. Tenho sede. Mechas de cabelo que se soltaram das minhas tranças grossas colam no suor ao longo das minhas têmporas. Já devo ter dado mais de cem passos sobre os ladrilhos tortos que pavimentam o caminho que é ao mesmo tempo o dique do canal. Em torno de mim só vejo pastos. Pontes levadiças sobre o canal protegem o acesso às casas. As residências e os estábulos do gado estão escondidos atrás de gigantescos salgueiros-chorões dos quais as extremidades dos ramos alcançam a superfície da água. Flores brancas na cerca ao longo do caminho - flores de alfena, diz a minha irmã – espalham um aroma adocicado. Elas me deixam um pouco enjoada. “Um, dois, três, quatro...” Vou contando os cordeirinhos num pasto. Eles saltam em todas as direções, levantando as quatro patinhas ao mesmo tempo do chão. As suas mães acompanham-nos, nervosas, com passos curtos e rápidos. Eu ouço o balido delas:
“Cuidado com o riacho”.
“Não, não brinque com aquele cordeiro”.
Finalmente, a minha irmã aponta com o dedo uma casa velha, de um lado um pouco afundada:
“Veja! É aquela”!
A casa fica ao pé de um declive. As paredes são feitas de pequenos tijolos vermelho-escuros. O telhado está coberto com telhas alaranjadas. Uma trilha descendo em direção da casa está coberta de cinzas e acompanha um gramado que tem uma cerca viva no centro. Lá, mais tarde, brincarei de pega-pega com meus irmãos. A todo vapor corríamos em torno da cerca viva, tentando evitar pisar nas fraldas que alvejavam na grama.
Todos os dias, a minha mamãe carrega um balde cheio de fraldas para o campinho. As suas mãos ligeiras procuram as pontas e com um estalo estende os panos sobre a grama. Às vezes, a chuva ameaça e, então, olha preocupada para o céu e, quando as primeiras gotas começam a cair, ela dá alarme:
“Albert! Meninos! A roupa!”
Todos nós corremos para fora e buscamos a roupa quase seca. Na sala, espalha-se um cheiro fresco de roupa alvejada ao sol.
Uma larga passagem entre a nossa casa e o estábulo do vizinho dá acesso ao fundo da casa, onde está a única porta. Atrás da casa há uma horta grande e atrás da horta um pasto que se estende até o horizonte. No espaço ladrilhado entre a casa e o quarto de despejo, está o cercado de bebê com o meu irmãozinho mais novo, Ward. O cabelo dele é escuro, os olhos castanhos e as bochechas vermelhas. Descalço, ele dança no cobertor velho que forra o chão no chiqueirinho.
“Oi! Gorduchinho gostoso!”
Eu e a minha irmã mais velha disputamos em fazer cafuné nele.
“Sair! Sair!”, ele pede, estendendo os bracinhos curtos. A minha irmã o levanta e juntos entramos na casa.
Não faz nem um mês que estamos morando na nova casa quando nasce outro irmãozinho. Pelos vitrais da parte superior das janelas, a luz entra em cores vermelhas, violetas e amarelas, brinca no papel da parede e dança sobre o berço que está num canto do quarto de meus pais. A mamãe está na cama e diz que machucou a perna:
“Venha ver!”, ela encoraja.
Jaap é o primeiro bebê na nossa família de cujo nascimento me lembro. Ele está deitado meio de lado entre os pequenos lençóis trabalhados com renda branca. Os seus olhos escuros me olham fixamente. Queria dar- lhe uma mão, mas um dedo é o suficiente. Na sua roupinha de malha brilha uma medalha coberta por um esmalte azul. Nossa Senhora o protegerá. O dia novamente está ensolarado quando, com Otto, posso ir contar aos vizinhos da nossa casa antiga que ganhamos mais um irmãozinho.
“Ele se chama Jaap e tem cabelos escuros com uma mecha de cabelos brancos no meio”.
Ganhamos refrigerante e bolachas que comemos com mordidas pequenas. Em seguida, voltamos pelo longo caminho, acompanhando o canal, passando pela curva, a igreja, a escola e as fazendas. Cada vez, ao passarmos por um pátio de fazenda, cachorros latem e esticam a corrente numa tentativa de atacar-nos. Seguro a mão do Otto com força. O velho trapeiro, Beijzerbergen, vem ao nosso encontro no seu triciclo. Com as duas mãos seguro o Otto, pois o Beijzerbergen é conhecido como o louco da aldeia.
“Jerushalaim, Jerushalaim”, ele canta em voz alta.
A filha dele cantava em óperas, mas durante a guerra, ela e sua mãe foram levadas pelos alemães para um campo de concentração. Nunca mais ele teve notícias delas. Ele passa por nós no seu triciclo cheio de trapos e bugigangas. Também a sua casa está cercada de coisas velhas. Por suas lentes que parecem fundos de garrafa ele olha para o céu. Eu sigo o seu olhar, mas não há nuvem nenhuma no céu.
Finalmente, depois de muitas curvas no caminho, chegamos em casa. Os meus sapatos marrons estão da cor de cinza de tanta poeira e tenho uma sede enorme.
“Pode beber da torneira”, diz a minha mãe. Jaap mama no peito dela.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
KALA KALA (O pássaro que voa)
1
É domingo de manhã e estou sendo levada à sala de parto. Seis pares de mãos cuidadosas ajudam na passagem para a mesa de parto. Em torno de mim reina uma tranquilidade gélida e na luz intensa das lâmpadas de néon o ambiente reflete um aspecto pálido como se fosse uma paisagem lunar.
No meu campo de visão, por entre as minhas pernas, a figura do ginecologista torna-se gigantesca. Ele enche uma seringa com um líquido anestesiante. Uma dor surda espalha-se por meu traseiro. Segurando firmemente uma tesoura na mão, ele espera a próxima contração. O meu abdômen se contrai. Chiando suavemente, a tesoura corta na minha carne. A toalha de mesa de pelúcia fazia um barulho semelhante quando, em criança, tentava cortá-la com a tesoura da minha mãe. Surda também era a dor causada pela tapa que ela me deu então.
“Está doida? Como pode fazer uma coisa assim?”
1944
O meu irmão, Otto, um ano mais velho, é o preferido da minha mãe. O seu nascimento, um mês antes de estourar a Segunda Guerra Mundial, é para ela um grande alívio. Ele é um menino ariano com cabelos loiros e olhos azuis que brilham ainda mais pela malha azul que ela tricoteara para ele. Com o Otto nos braços, mamãe pode misturar-se entre os alemães. Basta um sorriso dele e o alemão mais grosseiro transforma-se numa pessoa melancólica com saudades do seu ‘Heimat’. Eu já tenho menos chance de sensibilizar, pois os meus olhos são verdes, embora tenha os cabelos loiros. Além disso, sou muito arredia: assim que alguém olha para mim, começo a chorar. Com mais razão ainda quando esse alguém é um alemão gordo que quer saber se o meu pai está escondido em algum lugar e, por não achá-lo, bebe o nosso leite. Não, não sou fácil para a minha mãe. E também o meu irmãozinho Dirk, que nasce depois de mim na metade da guerra, é melhor deixar quieto no berço. Desse aí não se aproveita nada com aqueles olhos escuros, cabelo castanho e o corpo repleto de eczema. Minha irmãzinha, Tônia, certamente, vai ter olhos bem escuros e cabelo preto.
Em cima do dique, do outro lado do canal, está uma carruagem preta puxada por dois cavalos pretos. Uma pluma branca enfeita as suas cabeças. Atrás da carruagem, diante das portas totalmente abertas, vejo o meu pai. As suas mãos carregam um pequeno caixão.
É a minha lembrança mais remota; uma imagem estática. É como se eu olhasse para uma foto preto-branca que está impressa na minha memória. Procuro imaginar o lugar onde eu devia ter estado. Atravesso o canal sobre uma estreita ponte giratória, desço a trilha que vai do dique até a minha casa. A porta que fica no fundo da casa está aberta. Na sala, diante da janela, fico nas pontas dos meus pés, segurando-me no caixilho de madeira. Qual é o tamanho de uma criança de apenas três anos? É um dia cinzento, fim de outubro. No pequeno caixão está a minha irmãzinha, Tônia.
“Quando esta criança nascer, a guerra estará terminada; ela é a mensageira da paz”, dizia o médico em cada controle. O fim da guerra, porém, ainda está longe. No oeste da Holanda, o meu pai, a minha mãe e os seus seis filhos ainda têm que atravessar o pesado ‘inverno da fome’ de 1944. A data prevista para o nascimento da criança já passara há muito tempo quando, finalmente, a minha irmãzinha nasce. Com os seus ombros largos e um peso de seis quilogramas, dificilmente ela passa pelo canal da vida. O médico transpira na luz escassa de uma lanterna no quarto escurecido. Em vão. No fim do parto, a única pessoa que chora é a minha mãe.
É o meu primeiro encontro com a morte. Nossos caminhos, porém, se cruzarão ainda várias vezes. Às vezes, até parece que eu mesma a procuro: puxo um caldeirão com água fervente sobre o meu corpo; caio no rio e fui parar embaixo da ponte que fica a apenas dez centímetros da superfície da água, sendo salva na última hora; atravesso a rua sem olhar e sou atropelada por uma moto. Nas outras vezes, ela chega em casa enquanto eu apenas a observo.
(Continua)
Apresentação
O objetivo deste blog é publicar os contos de Adriana Oliehoek na língua portuguesa.
Adriana Oliehoek, nascida na Holanda em 1941, estudou enfermagem, artes plásticas e psicologia. Em 1980, ela optou por ser ‘Mãe Solteira Consciente’ e teve dois filhos. Em seguida, começou a dedicar-se à arte de escrever contos.
Para conhecer melhor a autora, serão publicados, com intervalos, os capítulos de um pequeno ensaio que ela intitulou: “Kala Kala – O Pássaro que voa”.
Outubro de 1944, uma menina de três anos observa como o pequeno caixão com o corpo da sua irmãzinha recém-nascida é levado embora numa carruagem preta. Inicialmente, morrer e nascer são para a criança, Jana, fenômenos naturais dados por Deus.
Lentamente, o tempo desenfeita todos os mitos e contos de fadas, revela a verdade sobre a existência e o papel que ela mesma como mulher fará neste processo.
Kala Kala é uma autobiografia romanceada em que a autora relata o nascimento do seu filho, recordando ao mesmo tempo a sua infância que marcou profundamente a sua vida.
Dando à luz uma nova vida, reflete sobre as vezes que teve que enfrentar a morte: da sua irmãzinha Tônia, de dois irmãos gêmeos, da sua prima predileta – Helena -, e do seu irmão, Tiago, morto num acidente.
Vida e morte se contrapõem em cuidados pela vida de bichinhos recém-nascidos e tristeza pela morte dos mesmos.
Uma história singela de uma mulher que queria ter continuado criança, que recorda como relutava contra o crescimento no momento em que está pondo no mundo uma nova criança.
Geminiano