quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Assassínio do Dr. Carlos Soares

Ary Gonçalves


Uma das leituras que me impressionaram, há quarenta anos, foi o livro de Evaristo de Morais — “Memórias de um Rábula Criminalista”. Ali, ele narra, com traços de tonalidade forte, o que foi o Júri do Assassino de Carlos Soares de Moura, representante de Rio Branco na Câmara Municipal e chefe político do município. Retrata o tumulto, os jurados e assistentes pulando pelas janelas ou galgando os telhados, os Soares, com a capangada de carabina frente ao Fórum, para justiçar o acusado se absolvido, tudo formando um debuxo tétrico do ambiente social e dos excessos de politicagem do interior brasileiro. As cenas de sangue eram comuns, após a vitória ou derrota eleitorais dos participantes.

Pouco depois da leitura, os azares da profissão iniciada levaram-nos a Alto Rio Doce, então vilarejo quase inatingível, sem estradas, sem condições de habitabilidade razoável, simples amontoado de casas velhas no alto do morro enorme, onde as duas ruas plantadas no despenhadeiro se encontravam no largo da Igreja, continuando numa só avenida. Naquela humildade, ninguém poderia prever a bela e próspera cidade dos nossos dias. Apenas existiam, na época, duas construções boas: o Foro novo e a residência do Major Silvino Viana, o herói, mártir ou bandido, da catástrofe de Rio Branco, que lá se tornara o pajé da comunidade. Não se movia uma palha, no município, sem o assentimento do Major.

Todos me informavam que qualquer coisa com a justiça, dependeria do Major Silvino. Na manhã seguinte à chegada, fui procurá-lo. In illo tempore, os rábulas estavam escorraçados das lides forenses, mas em Alto Rio Doce era ele quem requeria. Para tanto, tinha os papéis assinados por um bacharel formado e hoje Professor emérito da Faculdade de Direito de Juiz de Fora.

Morava o Major Silvino Viana num palácio, com escadarias de mármore, ornado de tapetes grossos, móveis de alto luxo, bibelôs e miçangas de cores variegadas. Lembrava um rajá indiano em meio à pobreza circunjacente.

— Como me sinto feliz, declarei-lhe, ao cumprimentar um homem cuja fama transpôs os limites do Estado e se projetou nas páginas do Evaristo de Morais.

— Nem me fale nisso, nem me fale nisso. Tenho horror de recordar esse episódio. Sou um homem simples; não fumo, não bebo, não jogo, não tomo café.

— Mas matar... Tomou-me pelo braço, levou-me para a rica sala de visita.

— Vou contar-lhe. A Campanha Civilista empolgou todo o Brasil. Era a primeira vez que surgia um candidato com probabilidade de vitória popular. A chefia de Peixoto Filho era respeitável e segura. Na época, era eu um moreninho ativo, esperto, trabalhador, conhecido e estimado de todos. Foi-me cometida a atribuição do alistamento. O Dr. Carlos Soares era apenas um “Soares”; respeitado pela autoridade de prefeito e pelo temor. Ás quatro horas da tarde, diariamente, deveriam ser entregues, no Cartório Eleitoral, os requerimentos. No primeiro dia, chegava o Dr. Carlos Soares, descia do cavalo e ainda de botas e esporas, tala na mão, entregava o maço, declarando: 15 requerimentos. O Tabelião enchia o recibo. E eu, em seguida, informava: 20 requerimentos. No dia seguinte, a cena se repetia. O Dr. Carlos: 20 requerimentos. E eu, logo após: 30 requerimentos. Não podia ele admitir que um mulatinho, sem eira nem beira, pudesse levar-lhe vantagem. Foi-se irritando, até que, certo dia, o Dr. Carlos Soares declarou, vitorioso:

— 40 requerimentos.

— 50 requerimentos, informei.

E o Dr. Carlos, arrogante:

— Que está dizendo?

— Ora, respondi, estou, doutor, apenas cumprindo o meu dever.

—Moleque, ainda tem coragem de me responder?

E, sem mais palavras, foi o Dr. Carlos levantando a tala. Perturbado pelo inopino do gesto, afastei- me, de costas, para dentro do Cartório Eleitoral, exclamando em grito:

— Não faça isso, doutor, não faça isso.

A tala estalava próxima ao meu rosto. Mas o agressor a levantava novamente e a desferia. Eu me recuava, repetindo a frase inicial. Quando, porém, esbarrei, de costas, na parede de fundos do Cartório, e ele continuava a avançar e brandir a arma ultrajante, não tive opção. Saquei do revólver e o descarreguei...

Enquanto o Major Silvino Viana rememorava, molemente, o acontecimento sinistro, lembrava-me eu do incidente calamitoso que ensanguentara Ubá, quando os Soares mataram, a bala, o tio, Dr. Camilo de Moura Estêvão, já ferido e no colo da esposa, D. Cocota...

— Tenho horror, repetia o Major Silvino, tenho horror de lembrar esse episódio.

Mas a verdade é que a minha impressão foi outra. As minúcias com que descrevia os fatos, os detalhes que ressaltava, a indicação de números e horários, a citação de personagens, a frieza da narração e uma alegria macabra retratada no semblante, deixaram-me a sensação de um prazer sádico do narrador...

sábado, 23 de abril de 2011

COISAS QUE A VIDA ESCREVE

Anderson Moreira escreve no Google o seguinte sobre Ary Gonçalves:

Ubaense nascido em 1905. Ilustre advogado, professor, jornalista, escritor, historiador, ruralista e homem público. Como político e líder de classe foi Deputado Estadual, fundador e presidente do Centro dos Lavradores, da Associação Comercial de Ubá e da Associação dos Empregados no Comércio de Ubá. Fundador e membro da Academia Ubaense de Letras. Faleceu em 1994.

Procurei mais dados sobre Ary Gonçalves por causa de um livreto que caiu nas minhas mãos e que é da sua autoria , a saber: "Coisas que a vida escreve". Trata-se de uma coletânea de crônicas, publicadas no início do século XX no jornal "Cidade de Ubá", editada em 1985 pela Editora Folha de Viçosa Ltda. Ao ler as suas crônicas, escritas de uma maneira gostosa de serem lidas e referentes também às cidades vizinhas de Ubá, ocorreu-me a ideia de que as mesmas talvez pudessem interessar também a outras pessoas desta região abençoada. O próprio autor, ao publicar o livreto, explica da seguinte forma as suas razões para publicar as crônicas:

A subliteratura enche as bibliotecas. São páginas escritas no dia-a-dia, destinadas à vida efêmera dos jornais, a um bocejo de curiosidade ou de interesse. No meio desses escritos digamos transitórios, há fatos e figuras que merecem destaque e que devem permanecer, mercê da ação exercida no ambiente social de uma época.



A exemplo dos numerosos cronistas de ontem e de hoje, de Machado de Assis a Carlos Drumont de Andrade, reunimos algumas crônicas publicadas na “Cidade de Ubá”, que podem servir ao historiador futuro, sequer na parte dos desenhos e do pitoresco.


O leitor julgará se merecem as honras da perpetuidade esboços tão despretensiosos e destinados ao túmulo da memória.

Faço do meu blog um veículo para aqueles que desejarem conhecer as 53 crônicas de Ary Gonçalves.
Segue hoje a primeira.


 Queda dos Peixotos

(Depoimento histórico)

Magro, meio curvo, chupado de rosto, cavanhaque pontiagudos terno branco, chapéu do Chile, sapatos de verniz, o Dr. Carlos Peixoto de Meio era o protótipo do político municipal. O último senador do Impéno, não empossado, era o chefe da oligarquia que se plantou no município por meio século e, embora monarquista inarredável, não dava ensejo, aqui, aos republicanos de porem em prática suas teorias pohficas. Da. Agostinha Brandão, sua esposa, era matrona do Serro, à antiga, mais dona cie casa do que figura dos acanhados meios sociais da época.

O filho do casal, Peixoto Filho, após o novo regime, com assombrosa inteligência, vasta cultura e prestígio nacional, mantinha o domínio doméstico na comarca. O Brasil era republicano. Ubá, monárquico.

Essa contradição provocava a reação dos remanescentes correligionários de Cesário Alvim.

Como pôde cair a importância predominante dos Peixotos nestas terras? A oposição era forte e vinha sendo esbulhada nos reconhecimentos. Na penúltima eleição, de 1907, era clara a vitória dos oposicionistas. Mas no reconhecimento de poderes que era feito pela Câmara Municipal foi anulada a 5•a seção de Ubá e apurada a de Campestre. E era uma vez a eleição dos vereadoz-es oposicionistas, Sebastião Januário Carneiro e Galdino de Faria Alvim, sendo eleitos os situacionistas Agenor Albino de Souza e Manuel Teixefra de Siqueira. O laudo do perito Dr. Levindo Coelho, julgado em 1908 apaixonado e faccioso pelo Tribunal (Revista Forense, vol. X, fls. 510-519), não salvou a oposição possiveimente vitoriosa.

Mas em 1910, seguindo Rui na Campanha Civilista, os Peixotos cederam a vitória aos liderados dos Drs. Cristiano Roças e Martinho Pinto.

A tradição municipal conta que, após o tiroteio na Câmara, o Dr. Carlos Peixoto de Meio, que se negava a sair da cadeira de Presidente, teve a mesma, com ele, arrancada e carregada por dois. jagunços para o centro do largo da Matriz.

Não foi assim. Ouvi, a respeito, o depoimento da figura central da reação, Domingos Jório, então chefe oposicionista de Tocantins.

Quando Raul Soares voltou de São Paulo e assumiu a chefia do hermismo em Rio Branco, em substituição ao irmão assassinado, Dr. Carlos Soares, veio a Ubá para estruturar a campanha situacionista contra o tio, Carlos Peixoto, e o primo, Peixoto Filho.

Difícil era vencer, em Tocantins, Neca Teixeira e Zeca da Costa. Mandou chamar Domingos Jório. Teve, parece, má impressão do “chefe”, na apresentação. deixando transparecer essa sensação de constrangimento. Aquele rapazola, condutor de guarda-costas de São José das Garruchas, não estaria à altura do cometimento.

— Vou mandar-lhe, diz Raul Soares, um batalhão policial, para você ganhar a eleição.

— Não é necessário, responde Jório. Se eu não ganhar, também não perco. Se for preciso, da segunda vez aceito a força pública.

Aquela resposta — se não ganhar, também não perco — mais embaraçou Raul, que apenas disse:

— Não entendo, mas seja como quiser.

De fato, nas eleições, dispondo dos mesários de confiança, Domingos Jório, combinadamente, fez votar todos os seus eleitores em primeiro lugar. Os títulos, trazidos por Neca Teixeira, eram colocados por baixo. E as explicações claras:

— Veja, está tudo em ordem. São chamados os de cima. Fiscalize e não tenha dúvidas. Todos votarão.

Quando, porém, votou o último eleitor hermista, da sala vizinha saíram os canos de carabinas e começou o tiroteio. Os mesários se alarmaram, os eleitores civilistas fugiram espavoridos. Mas Domingos Jório, teatral:

- Que é isso, gente, que é isso?

E ao cessar a fuzilaria e serenarem os &nimos, não havia um só eleitor de Neca Teixeira, da multidão que se apinhava frente à seção eleitoral. E Domingos, calmo, para o chefe civilista:

— Tudo passou. Pode trazer os seus eleitores.

Mas os cabras da roça já estavam longe. E que força os traria de novo, para os canos dos fuzis?

Vencida a eleição contra o civilismo, o malabarismo do velho Carlos Peixoto fê-lo, novamente, Agente Executivo Municipal.

Mas Domingos Jório não se conformou. Marcada a sessão da posse, na hora exata trouxe para o salão do Forum os seus “companheiros”. E ao sinal dado, um seu compadre, barbeiro no Morro do Caputo, como combinado, descarregou o revólver no assoalho. Voaram assistentes por todos os lados. O único que tentou reagir foi o Toté, informa Jório, que estava prevenido e levou-lhe a arma ao peito, explodindo peremptório:

— Não saque a garrucha, porque morre. Todos já saíram e você não fará o sacrifício inútil. Somos o governo.

Retirado o último vereador, fechou ele, com os companheiros, o prédio do Forum, indo calmamente entregar a chave da porta ao Dr. Câncio Prazeres, Juiz de Direito. Este não quis recebê-la, alarmando-se e advertindo que o Governo poderia mandar um batalhão para garantir a posse.

— Nem pense V. Exa. nisso, afirmou Jório. Tudo está articulado com o delegado, Dr. Waldemar Loureiro, que foi pescar.

E a família Peixoto resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro...