sábado, 11 de setembro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 9

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 9
Adriana  Oliehoek

9

“Está vindo outra contração?”, pergunta uma amiga.
   “Vamos tentar de novo, senhora”, diz o médico. “Força! Vamos! Faça força! Tente! Ainda sente a contração? Dá para fazer força mais uma vez? Não? Pode deitar e descansar um pouco”.
    “Enfermeira, a senhora pode aplicar uma injeção de sintocinon na parturiente?”
   “Senhoras, procurem apoiar bem as pernas dela, pois o trabalho de parto não é fácil para a sua amiga”.
   “Já providenciou a sintocinon, enfermeira? Só uma unidade!”, ressoa a sua voz pela sala.
   “Outra contração? Vamos lá, senhora!”
   “No músculo, doutor?”, pergunta a enfermeira.
   “Sim, intramuscular.”
   “Uma picada, senhora, para estimular um pouco as contrações”.
   “É um menino, é um menino”, canta o vácuo extrator. 


1952

Vamos ter uma nova professora na escola. Ela é de Amsterdã e usa sapatos verdes.
   “Amsterdã, cidade esquisita, construída sobre estacas”, canto junto com as outras crianças da minha classe. Muito mais do que isso eu não sei de Amsterdã. Bem, eu sei que é a capital do nosso país, que Joost van den Vondel escrevia lá os seus poemas e que Rembrandt pintou lá a ‘Ronda Noturna’.
Eu sei também que os habitantes de Amsterdã são muito espertos, assim como a minha tia Pietje.
   Todos os anos ela nos visita no dia do aniversário do meu pai. Juntamente com suas duas irmãs, ela invade estrondosamente a nossa casa: “Oi querido. Como vai, irmãozinho? Vem cá para um beijo gostoso.” Ninguém está seguro. Ao mesmo tempo, ela fala para a minha mãe: “Quanto a mim, podem colocar aquele motorista de ônibus na liquidação! Meu Deus, que homem mal-humorado. Não é, meninas? Ele já deve ter esquecido como é que se ri. Certamente, ele deve estar com azia”.
   E quando todos estão tomando uma xícara de café...
   “Escutem só o que me aconteceu outro dia...”
   “Vocês lembram, quando aqueles soldados alemães estavam caçando homens para trabalharem nas fábricas da Alemanha?” “Sabem de que eles tinham medo? De doenças. Quando vi que os alemães estavam vindo em direção da minha casa, coloquei os meus filhos Wimpie e Tonnie na cama e escondi o tio Gerard embaixo da mesma cama. Os dois meninos já estavam magros, mas com um pedaço de carvão escureci a pele deles debaixo dos olhos e com farinha de trigo clareei as bochechas. Ficaram com aspecto horrível. E aqueles alemães cagaram nas calças de medo. Eles pensavam que era difteria”.
   “Ela parece uma judia”, fofocavam as minhas outras tias rindo, enquanto estavam lavando a louça na cozinha. “Se não tomar cuidado, ela vende para você o seu próprio chapéu”.
   Durante muito tempo fico pensando como alguém deve ser bobo, se ele é capaz de comprar o seu próprio chapéu. Mas, como todo mundo, adoro escutar as histórias dela. Quando ela está na metade da história – nós estamos esperando com ansiedade o desfecho – a própria tia Pietje já não se aguenta de tanto rir. Rebentando-se de riso, ela enxuga, com um lencinho branco, as lágrimas que escorrem sobre ambas as faces:
“Ai, meninas, não aguento mais. Faço xixi nas calças! Juro!”

A professora Van Selst é a professora mais querida que eu tive. Naquele ano, o meu boletim só mostra notas boas: um oito pelo meu comportamento e, imagine só, um nove por ciências naturais. A professora Van Selst gosta de flores e plantas e, depois das aulas, eu as procuro para ela nos pastos. Eu engatinho nas margens pantanosas dos riachos e, segurando-me com uma mão a uma moita de capim, estendo a outra para flores aquáticas entre as lentilhas-d’água. No dia seguinte, levo a minha colheita num vidro para a escola.
   “Oh, Jana, que bonito!” Usando novamente os sapatos verdes, ela se dirige à estante alta no canto da sala de aula. Lá, na prateleira do meio, está o livro grande com o título: “Plantas e flores silvestres”. Da janela, ela pega uma série de frascos. Jozien pode enchê-los de água na pia que fica no fundo da sala de aula. As crianças se acotovelam em torno da mesa da professora, enquanto o seu dedo desliza sobre as figuras no livro. “Será que esta florzinha amarela não é o cornichão? E essa, com pequenas flores azuis rosadas, é o ‘miosótis do pântano’. O miosótis é vulgarmente chamado de ‘não-te-esqueças-de-mim’. Mas esta flor que a Jana trouxe tem muito mais folhas do que aquelas que crescem no jardim de suas casas, por causa do lugar pantanoso em que cresce. E esta flor aqui é o malmequer-dos-brejos, também uma planta aquática...”
  
Eu adoro a história da origem da minha aldeia. Muitos anos atrás, antes de existirem os diques e os moinhos que puxam a água das partes mais baixas para o canal num nível mais alto, o local onde fica a minha aldeia era pantanoso. Uma zona ecológica que formava a passagem entre um lago mais para o sul e uma floresta escura. No outono, o vento empurrava a água do lago além das suas margens. Na primavera, porém, os caniços ondulantes com caules compridos avançavam lago adentro. Pouco a pouco, o solo se transformou em turfa e chegou um dia em que a turfa era firme o suficiente para as sementes trazidas pelo vento do leste, dando origem às turfeiras baixas. Assim surgiram os pôlderes em que os fazendeiros colocam o seu gado, em que eu brinco com meus irmãos ou onde procuro o meu refúgio, como também o meu pai fazia. Quando menino de seis anos, ele fugia às quatro horas de manhã da casa para os prados, porque não gostava de ir para a escola.
   A nossa casa pequena me sufoca e eu corro, assim como ele antigamente, pelo vasto pôlder atrás da casa, vista apenas por Deus e pelos fofoqueiros da aldeia.
   “Veja, lá vai Jana, a filha do Adriano e Cornélia”.
   “O que ela está fazendo?”
   “Ela tira os sapatos e as meias”.
   “Menina doida! Ela estende o paletó acima da cabeça”.
   “O vento o faz esvoaçar”.
   “Ela pensa que é uma ave”.
   “É bom ela tomar cuidado, senão o vento a leva”.
         Eu imito a voz das aves: ‘Qui..uít! Qui,,,uít!, grito a plenos pulmões. Por fim, sentindo-me cansada, deito-me de bruços e fico, durante longos minutos, com o rosto escondido em cheiros úmidos de terra, esterco e pasto. Repito mentalmente os nomes que a professora escreveu numa etiqueta colada nos frascos que guardam os meus colhimentos: cinosuro, pasto oloroso, rabo-de-raposa, festuca ovina e, o que não pode ser esquecido, a aveia brava com seus caules flexíveis e espigas finíssimas. Milhares de anos atrás, fazendeiros do Oriente Médio cultivaram a nossa aveia atual, a aveia sativa, a partir desta planta primitiva. (Continua...)