segunda-feira, 23 de abril de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


Minha pequena guerra


"Vossos filhos não são vossos filhos,
são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor,
mas não vossos pensamentos.
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles,
mas não podem fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás
e não se demora com os dias passados."

Estas palavras de Kahlil Gibran estão no verso de um cartão que recebi da Dienah, uma amiga antiga. Com letras elegantes escreveu: Para Sagita, 14 de setembro de 1986. É o dia do meu aniversário e estou três meses grávida do meu filho mais novo.

***
‘Mamãe,’ pergunta Davi: ‘Você ainda tem alguma coisa de Bert Thiecke?’

         Meus pensamentos se voltam para o passado, quando Davi ainda não tinha nascido, para o período tempestuoso da minha vida, a época da reviravolta; para a segunda metade dos anos setenta, o tempo de demonstrações e protestos. Queremos ação e nós mesmos fazemos as mudanças. Formamos grupos de trabalho e pomos as mãos à obra em bairros e comunidades. Eu mesma trabalho num centro de assessoramento jurídico gratuito e começo um projeto de saúde pública. Tudo isso com a finalidade de transmitir conhecimentos, tornar o povo mais emancipado para que seja menos dependente da assistência e do governo.
         Naquele período, conheci pessoas muito especiais, entre as quais o Bert. Olhando para trás, vejo que esse processo causou uma mudança em nós mesmos.  Pessoas aderiam à filosofia de Bhagwan, homossexuais saíam do armário e mulheres se tornavam, conscientemente, mães solteiras, entre as quais eu mesma. Alguns anos depois, tudo terminou.
         No verão de 1983, Bert foi assassinado por seu companheiro de vida, Stephen, com uma facada no coração. Em seguida, Stephen suicidou-se com uma overdose de remédios tirados da bolsa de Bert, que era médico.
‘Dois holandeses mortos numa barraca num camping na Itália’ são os cabeçalhos dos jornais.’

‘Bert Thiecke?’
‘Sim, tenho que fazer um pequeno documentário para a escola.’

         Davi está seguindo um curso para cineasta e quer agora – mais de 25 anos depois – fazer um filme sobre o acontecido. Durante dois dias viro a casa de cabeça para baixo à procura de vestígios de Bert. Tenho quase certeza que, não muito tempo atrás, procurando também por alguns recortes de jornais antigos, tive em minhas mãos o cartão fúnebre do seu falecimento. Cheia de esperança, separo os envelopes com margem cinzenta do monte de cartas com cartões referentes a Ano Novo, aniversários, férias que, no decorrer dos anos, guardei fielmente e que continuam esperando por um lugarzinho em algum álbum ou no cesto de papel velho. Procuro até na caixa vermelha com o legado da minha mãe e percebo que devo ter herdado dela a mania de guardar tudo. Recortes de jornais, cartões postais, santinhos e muitos cartões fúnebres de tios, tias, do meu pai e do meu irmão. No fundo da caixa, um pacote de felicitações em forma de poesia, escritas elegantemente por algum professor e enfeitadas com figurinhas, que costumávamos declamar por ocasião de alguma festa dos nossos pais.
         Não encontro o cartão fúnebre do Bert. Apenas um cartão da sua família, de um lugar no norte da Holanda, com agradecimentos pelo interesse demonstrado. Começo até a duvidar se recebi um cartão. O que a sua família sabia a respeito da vida dele, dos seus amigos, da minha existência?
         Dou-me conta que esqueci a idade dele e que tenho dificuldade em lembrar-me do seu rosto; loiro, olhos claros, provavelmente lentes de contato, uma presença agradável que não se impõe, tendo às vezes um traço leve de ironia em torno da boca. Não consigo ver com nitidez os seus traços. Nunca mais o vi. Bert é um daqueles homens de quem não tenho fotografia. Nos meus diários, começo, de vez em quando, a escrever uma carta para a sua família. Conto-lhes que sinto falta de Bert e peço uma fotografia com a qual quero manter viva a lembrança dele para mim e para o meu filho. A última tentativa é de maio de 1988. Arão tem então seis anos e Davi mais de um ano. Nunca, porém, cheguei a mandar uma carta para a família. A única lembrança que temos de Bert é uma pequena taça de prata, onde está gravado o nome do Arão. Um presente de nascimento. Fora disso alguns cartões postais que ele mandava para a gente. De vários lugares onde passava férias ele nos mandava suas lembranças amáveis, esperando reencontrar-se conosco em breve.

***

         Durante a minha busca para ‘algo’ de Bert, encontro o cartão de Dienah. Datilografado, já não acho o texto tão impressionante. Que a alma dos meus filhos mora agora na casa do amanhã, onde não posso visitá-los, se fixa na minha mente.
         Davi está cheio de planos. 'Mãe!', diz ele pelo telefone. ‘Sabe o que descobri?’
‘Não sei.’
'Bert e Stephen estavam em Verona. Lá eles foram assistir a uma ópera. E sabe como se chamava o camping onde eles ficaram?’
‘Não tenho ideia.’
'Romeo E Giulietta'

sábado, 24 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A bicicleta do meu pai

A bicicleta do meu pai era uma bicicleta sólida. Vendo-a na minha imaginação vejo-a pintada de preto. Dá para ver que o meu pai mesmo fizera isso, pois a pintura não está totalmente perfeita. Vejo tinta escorrida, marcas de pincel e pequenas bolhas de tinta. Além do mais, o fio elétrico da lanterna também está pintado. Lembro-me bem disso, pois muitas vezes peguei carona, sentada no cano com as duas pernas para um lado e levemente apoiada no guidão. Eu tomava cuidado para não apoiar demais, pois a dificuldade de manobrar o guidão com o meu peso em cima fazia meu pai resmungar.
Todos os dias, ao raiar do sol, montado nesta bicicleta preta, ele ia para o seu trabalho numa cidade vizinha. Pensando bem, não me lembro de ter presenciado alguma vez a sua saída para o trabalho. Quando nós, crianças, descíamos às sete horas do sótão onde dormíamos, ele já estava trabalhando na fábrica de fundição de ferro, a fábrica fedida, como ele costumava dizer.
O que eu presenciei muitas vezes foi a volta do trabalho. Eu estava, então, brincando na rua ou pescando em algum riacho, depois das aulas na escola. Por volta da hora da janta, ele chegava pedalando, geralmente com um primo, companheiro de trabalho na fábrica, com os dois cotovelos apoiados no guidão, na ciclovia que acompanhava o canal até a nossa cidade. Cada vez que o via chegando, eu sentia uma sensação de orgulho no meu peito. Aí vinha o meu pai. Claro que eu o conhecia bem dentro de casa, na sala, nas refeições, trabalhando no jardim, cuidando do porco, mas vê-lo na rua pública era diferente. Aí ele estava diante dos olhos do mundo. Mesmo que este mundo não fosse mais do que algumas fazendas, um caminho em cima do dique ao longo do canal, um camponês puxando uma carrocinha carregada de latas de leite e, às vezes, um ônibus. Aquele que vinha pedalando aí era meu pai! E quando ele me via com seu rosto coberto de poeira, cansado do longo dia de trabalho, o seu sorriso produzia rugas em torno dos seus olhos e gritava em alta voz: “Oi, xará”. Aí eu ficava ainda mais orgulhosa, pois sabia que ele dizia isto só para mim. (Nós dois tínhamos o mesmo nome: Adriano e Adriana). Aquilo me dava a sensação que eu tinha uma ligação especial com ele. Abandonava a minha pescaria ou brincadeira e corria com ele os últimos cem metros até em casa, onde a minha mãe estava cortando o pão para o lanche.

Um dia, estávamos todos em torno da mesa. Era um dia lindo no mês de junho em que o sol num céu azul, despejado de nuvens, secava montes de feno cheiroso montado sobre cavaletes. E o pai ainda não tinha chegado. Todos juntos já tínhamos gritado em coro: fome, fome! Já tínhamos batido com os pratos na mesa, mas ele tardava em chegar. Já eram quase sete horas! Finalmente, a mãe deu licença para começarmos a comer, embora isto fosse incomum. A mãe olhava cada vez mais nervosa para o despertador que estava em cima do armário. 
Quando tínhamos comido a metade das fatias de pão, soou, de repente, um tremendo cantar de pneus de bicicleta sobre o cascalho fino que cobria a descida da rua até a nossa casa. Alguém descia a toda velocidade o dique em direção à nossa casa que ficava ao pé do dique. Um vulto passou como um relâmpago em frente da janelinha da cozinha. E, então, ouvimos um baque suave. Assustados, corríamos para fora e víamos o pai, deitado na cerca viva e sua bicicleta por cima dele. Quando ele saiu gemendo de baixo da bicicleta, a primeira coisa que chamou a nossa atenção era uma boquilha de cigarrilha no canto da sua boca. Meu pai com um charuto? Isso nunca tínhamos visto antes. E quando ele começou a falar resmungando, percebemos que ele tinha bebido. Que coisa mais estranha, pois bebida e meu pai eram duas coisas que não combinavam de jeito nenhum. Lá estava ele, sentado no chão, desalinhado, com folhinhas da cerca viva na sua boina, mastigando a boquilha da cigarrilha.
A razão mais profunda desta chegada singular em casa naquela noite não ficou clara para nós. Mas meu primo que o acompanhou de bicicleta para casa nos forneceu depois os pormenores que faltavam.
O que acontecera foi o seguinte. Como todos os dias, depois do dia de trabalho na fábrica o pai montou a sua bicicleta, para ir para casa juntamente com alguns companheiros. Um deles tinha celebrado naqueles dias as suas bodas de prata de casamento e conseguiu convencer o pai e o primo para comemorar isso no Bar Agrícola, situado numa rua por onde tinham que passar. O verão estava no ar e eles estavam contentes de terem terminado mais um dia naquela ‘fábrica fedida’. Uma pequena distração não faria mal a ninguém. Após algumas recusas, o meu pai até consentira em tomar um drinque. Em alguém que nunca bebe, o efeito pode ser inesperado. Desafiado, ele até atreveu-se a jogar uma partida de bilhar. Vinculado ao jogo, porém, estava que, depois de cada partida, todos tomassem um drinque e que o do vencedor fosse grátis.  Assim meu pai ficou arrojado. E se não foi porque ele queria mostrar aos outros o que era jogar bilhar, certamente era porque permitia que despercebidamente enchessem o copinho dele com drinques gratuitos. E para selar mais ainda a alegria da festa, ele foi declarado o grande vencedor e colocaram, como troféu, uma cigarrilha na sua boca. Fumegando empreendeu a viagem de bicicleta para casa. Meu primo disse que ele começou a andar cada vez mais devagar e que meu pai achava que isso fosse por causa do charuto. Mas, conforme meu primo, fazia tempo que a cigarrilha tinha se desprendido da boquilha. Finalmente, chegaram em casa, onde meu pai foi parar na cerca viva.
A preocupação da mãe se transformara em raiva. Balançando a cabeça ela deu uma volta em torno dele. Ajudaram-no a levantar-se, o que não era nada fácil. E no momento em que ele começou a sentir-se um pouco melhor, nosso vizinho, um camponês, desceu a trilha até a nossa casa. Que chato que justamente ele tinha que ver o meu pai naquele estado. Mas não era bem por acaso. Meu pai havia prometido de ajudá-lo com o armazenamento do feno para o inverno, mas não tinha aparecido. Portanto, ele veio cobrar o cumprimento da promessa. “Puxa, Ari, por que esta demora? Você não me prometeu de ajudar?” Meu pai olhou para ele com olhinhos pequeninos, tirou a boquilha da boca e disse: “por que não põe fogo neste feno ...?!”


sexta-feira, 16 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A Fonte da Donzela

Com a mochila ainda nas costas e o trinco da porta na minha mão, uma voz rouca soa: ‘Faz tempo que chegaste?’. Viro-me em direção do som. Com uma perna dentro e a outra no último degrau da escadinha, uma senhora gorda está prestes a entrar num trailer vizinho.
‘Ah, não’, gemo baixinho. Não queria esta imagem no meu cenário. Já tive que modificar os meus planos uma vez. O Rodrigo não quis vir comigo e eu contara tanto com a sua presença para fugir daquela cidade barulhenta e poluída, voltando para a natureza. Ontem à noite, a mochila já estava pronta, o telefone tocou: não tinha tempo, estava frio e escuro demais, foi a desculpa. A cama rangia durante a noite, a roupa de cama gemia, a minha cabeça latejava: não se faça de tolo, um rapaz dez anos mais novo do que eu!
A vida não é justa. Sou boazinha demais. Estou sempre pronta para ajudar, para dar-me em amor. Dar, dar... dar até sentir-me totalmente vazia. Estava cheia de ver gente e fugi para um camping onde uma amiga  me emprestara o seu trailer. O dia já está findando quando, finalmente, chego ao local. Na luz pálida do sol do outono, a mulher espera uma resposta. Eu me pergunto se devo negá-la sem mais nem menos. Virar as costas para ela e entrar? Mas, se ela estranhar a minha conduta? Quem sabe, ela fica com raiva e estou sozinha aqui. ‘Não, estou chegando agora’, respondo à sua pergunta.
'Queres beber alguma coisa?’
Meia hora depois, estou tomando café no ‘treile’ da Maria. Outro campista, com uma barba de alguns dias e olhos cavados, entra furtivamente no trailer. Antônio conta que está aposentado e que sente falta das mulheres desde que ele se divorciou faz cinco anos. Esta noite, Antônio e Maria vão ver televisão juntos e, se eu não tiver nada que fazer, sou muito bem-vinda. Maria usa o pronome ‘tu’ para todo mundo. De vez em quando, porém, ela diz ‘a senhora’.
À noite, já estou deitada, alguém bate na porta: é Antônio. Se quero ver TV? Eu recuso. O meu corpo está tenso e reage a cada som que ocorre na vizinhança do trailer.
No dia seguinte, acordo com um solzinho agradável entrando no meu quarto. Aumento o aquecedor e ligo o rádio. Em seguida, volto para a cama. À espera do calor, escuto no rádio um programa para mulheres. Visto-me e, enquanto preparo o café, vejo que alguém mexe com o trinco da porta. A voz da Maria: ‘queres uma xícara de café?’
'Quero, sim, mas ainda não tomei o café da manhã.'
'Puxa, como tu acordas tarde,' ela observa. Dou-lhe razão e comunico que primeiro quero tomar o meu café da manhã, o café que eu mesma fiz e que, depois, vou fazer uma caminhada. Maria murmura que é melhor ir de bicicleta, pois ‘assim tu vês muito mais’.
'Não, quero ir a pé’, respondo decididamente.
Olhando disfarçadamente para todos os lados, saio às onze e meia do trailer. Graças a Deus, nenhum sinal de Antônio ou Maria. Eles me fazem lembrar as figuras sinistras de um filme de Ingmar Bergman: A Fonte da Donzela. Figuras reptilóides, astutas, malvadas, que, como num reflexo, satisfazem às suas necessidades. Saio do camping, atravesso a estrada e sigo uma trilha ao longo de extensas criações de gansos. O céu de um azul rarefeito distende-se silenciosamente sobre a paisagem outonal. Encho os pulmões de ar, prenhe de odores da terra, folhas apodrecidas, musgo e cogumelos. Atrás das cercas, gansos novinhos afastam-se grasnando com movimentos cambaleantes. Sinto vontade de chorar, com saudades do meu pai. O vento limpa as lágrimas do meu rosto. Sigo a diretriz cegamente. O objetivo é andar, cheirar, sentir. Procurar a Adriana e meu pai dentro de mim.
Uma menina pequena fugindo da maldade do mundo. Um dia, fugi do acampamento das Bandeirantes após uma briga com a chefe. Horas em seguida andei pela areia solta das dunas ao longo duma cerca que era a minha guia, assim como as pedrinhas eram a diretriz do Pequeno Polegar. O ser humano só é valorizado quando já não está mais presente. Agora não há nenhuma chefe zangada e preocupada que me leva de volta enquanto durmo. Meu pai é um lugar silencioso, a minha mãe ocupada com a renovação da sua casa. Será que isso é tornar-se adulto: aceitar que ninguém vai sentir falta da gente?
Num toque de mágica o sol doura as folhas no chão. As árvores que dirigem a trilha pelo bosque parecem ter crescido eretas para o céu. Elas murmuram num frêmito refrescante. Será que elas me vigiam? Assustada olho em meu redor: A Fonte da Donzela! Vestida inocentemente com uma blusa de lã pura, de calça jeans e botas de couro, caminho na plena luz do sol. Uma prenda fácil para a maldade escondida na escuridão do bosque. Não quero pensar, não quero saber nada nem do bem nem do mal. Quero ser inocente como uma criança. Um pouco mais adiante, um homem anda ociosamente. É um militar. Como quem não quer nada com nada, apanho um pau do chão. O seguro com força e sinto a minha força passar para o cacete: a minha força que o homem vai sentir se pensar em fazer algo comigo. Um filete de suor escorre por entre as minhas omoplatas, enquanto saúdo timidamente o homem ao passar por ele. Lá, bem mais adiante, um veículo militar ocupa o espaço da trilha pelo bosque. De repente, vejo militares por todos os lados. Os meus braços se relaxam. O pau balança meio sem graça ao lado da minha bota.
'Tempo bonito,' diz o militar.
‘É, sim, gostoso', respondo.
'Está de férias?’, soa a sua voz amigavelmente.
'Estou, tirei uns dias livres. Vocês estão fazendo exercícios?’
'Estamos preparando um exercício, colocando avisos e outras coisas’, ele explica.
Voltando pelo caminho com as criações de gansos, o pau desenha riscos na areia, bate de leve na minha bota, sussurra pelo ar: mas fica em minhas mãos.


sexta-feira, 9 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A morte do Tiago

Coloco o seu retrato pintado em cima da estante, feita de madeira de carvalho e com vitrais nas portinhas. Depois da mudança, não o pendurei mais. Reencontrei-o na gaveta debaixo da minha cama. Uma fina camada de poeira cinzenta cobre as ocras amarelas e marrons, o ciano queimado, as leves pinceladas de carmim. Apenas o seu blusão tem a cor de terra esverdeada.
Sopro levemente sobre a superfície. Meus lábios tocam, de leve, o seu queixo com o buraquinho característico da família, suas faces, a sua testa estreita e, por fim, a sua boca. Em seguida, eu espero. Será que ainda espero um milagre?

Meu irmão, Tiago, acidentou-se, fatalmente, no dia em que os sinos tocavam anunciando o enterro de um conterrâneo de vinte anos. Este rapaz, na sua intrepidez juvenil, despedaçou-se, literalmente, com o seu carro contra um poste. “Não há como vesti-lo para os funerais”, o agente funerário comunicou aos pais chocados. O caixão ficou fechado. A aldeia inteira estava de luto e o Tiago, em nome da associação juvenil, fora à floricultura onde encomendara uma coroa de flores. Ele escolheu uma coroa preta com copos-de-leite.

Na primavera de 1971, eu morava e trabalhava em Utrecht, onde seguia também um curso noturno. Três noites por semana, eu pegava a minha pasta de livros e enriquecia-me de conhecimentos que não tive oportunidade de colher na minha juventude.
Foi numa noite de uma quarta-feira, durante a aula de ciências naturais, que o zelador entrou hesitante na sala de aula. Ele disse algumas palavras ao ouvido do professor, que estava em ponto de explicar-nos a refração da luz através de um prisma. A mão do professor, segurando um pedacinho de giz, parou a cima da sua cabeça, quando ele se virou e disse: ‘Senhora Adriana, tem telefone para a senhora’.
Com o olhar fixado no pedacinho de giz acima da sua cabeça, as palavras dele rodavam na minha cabeça: tem telefone para a senhora? Telefone? Para a senhora?
Não fiz nenhuma menção de deixar o meu lugar. ‘Não pode ser’, respondi.
‘É verdade, sim. Tem telefone para a senhora’.
Eu me perguntava se ele sabia que o braço dele ainda estava levantado? Que o giz estava entre os seus dedos como um cigarro apagado?
‘Quem é que vai querer falar comigo aqui na escola?’
‘É melhor a senhora ir.’
Talvez eu devesse dizer: professor, o seu giz...
‘Deve ser um engano. Não pode ser. Ninguém vai ligar para mim aqui.’
‘Mas é verdade. A senhora pode atender no corredor.’
A mão que segurava o giz desceu. Finalmente.
‘Pode ir. O zelador vai mostrar onde está o telefone.’
Segui o zelador para o corredor, onde, num cantinho, o auscultador estava esperando por mim sobre uma prancheta debaixo do telefone.
‘Sim, alô. Quem fala?’
‘Sou eu, Adriana’, respondeu o meu irmão Pedro. ‘Você tem que vir para casa!’
‘Ir para casa? Estou no meio da aula de ciências.’ Como é que ele podia ligar para me dizer que tinha que ir para casa. Eu não podia faltar àquelas aulas, de jeito nenhum!
‘Você tem que vir, Adriana. O Tiago sofreu um acidente.’
O Tiago, um dos meus irmãos mais novos, tinha tido um acidente? O Tiago que, de antemão, perdia qualquer batalha de concorrência que tentasse com o irmão logo acima dele, o Adriano. Aquele que queria fazer as pazes, quando os seus irmãos menores, Francisco e Léo, brigavam, mas que, inevitavelmente, apanhava porque os dois, em seguida, se voltavam como um só homem contra ele. Aquele que aprendeu a tocar violão sozinho; que como baixista num conjunto vagou durante dois anos ao longo da Riviera italiana e francesa e vivia... Vivia de quê? Os bolsos dele sempre estavam vazios. Com regularidade, a minha mãe colocava um dinheirinho no bolso dele: ‘filho, cuide melhor do seu dinheiro.’
‘Você estraga este menino! Eu não dou mais nada!’, dizia meu pai.
‘Não se preocupe, mãe. Tudo vai dar certo’, respondia o Tiago sempre.
Ele tinha 23 anos.
‘Puxa, não é grave, não é?’
‘Sim, é muito grave.’
‘Mas... está morto?
‘Está, Adriana, ele está morto.’
‘Não, não pode ser!’
‘Infelizmente, é a verdade, Adriana.’

Sentia-me atravessada por uma faca afiadíssima que entalhava no meu esterno, atingia o meu diafragma. Meu estômago virava como uma pedra pontiaguda na minha barriga. Balançando para lá e para cá como um navio nas ondas de um mar bravo, eu tentava manter-me em pé. Mantenha-se firme, não caia. Você tem que ir para casa, para o Tiago!

Utrecht – Stompwijk. Uma distância de 80 quilômetros. Em alta velocidade, um colega da escola levou-me no seu carro para casa. Ele ofereceu-se espontaneamente. No escuro, na auto-estrada, eu tentava criar uma imagem do acontecido. Tiago estava morto. Como foi? Quem foi? Onde? Era mesmo um acidente? Solitário e melancólico, ele costumava olhar de um modo tão pensativo. Será que ele...? O Tiago não era feliz com a vida burguesa que levava depois que voltou do exterior. Só mesmo, nos fins da semana, quando tinha oportunidade de tocar num conjunto, ele revivescia um pouco.
Na casa paterna, encontrei os meus irmãos, a minha irmã e outros parentes com os olhos vermelhos e intumescidos, esperando meus pais.

Os meus pais estavam na sala de espera do hospital, aonde fora levado o Tiago, segurando firmemente um ao outro, sentados num banco de madeira. Quantas horas haviam passado? Uma? Duas?
Finalmente, um médico andou em direção deles: ‘Os pais do Tiago?’
‘Sim’, como se fossem uma só pessoa, levantaram-se.
‘Infelizmente, não pudemos fazer nada por seu filho’.
Não puderam fazer nada? Por que esperaram, então, tanto tempo. Sem poderem entender a extensão dessas palavras, acompanharam o médico, andando por corredores sem fim, que se tornavam cada vez mais cinzentos e frios. Chegando ao mortuário, o médico puxou o lençol para trás que estava esticado sobre o corpo sem vida de um rapaz: ‘É este o seu filho?’ ‘É o Tiago’, diziam ao mesmo tempo.

Quantas vezes, na minha imaginação, eu acompanhei mais tarde o meu irmão na sua última viagem, no seu carrinho recentemente comprado? Quantas vezes, na minha imaginação, sentei ao lado dele, quando ele saiu pela última vez do seu trabalho?
O seu rosto surge na minha memória, destacando-se a mecha branca de cabelo na testa, contrastando com o resto do seu cabelo loiro escuro: um pedacinho de pele sem pigmentação com que ele nascera. ‘Quando papai e mamãe fizeram você, faltou tinta’, costumávamos caçoar dele.
Vejo suas mãos delgadas, puxando o volante ora para a direita ora para a esquerda, direcionando o carro sobre a estrada provincial que passava pela aldeia.
Faz quase um ano que ele tirou a carta de habilitação. Orgulhoso e contente de poder significar algo para alguém, ele atende a todos os pedidos de carona.
‘Tiago, eu perdi o ônibus. Será que você me pode levar até em casa?’
‘Tiago, a gente gostaria de fazer uma visita à tia Ana. Será que você pode buscar a gente hoje à noite?’
‘Tiago, eu tenho tanta bagagem. É demais para ir de ônibus. Será que você pode levar-me para casa?’
‘Tiago, o tempo está tão ruim, será que você pode levar a gente até a igreja?’
A cada pedido, os seus olhos castanhos brilhavam. O carro fez com que o seu lugar na hierarquia dentro da casa subisse consideravelmente.

O trânsito na outra pista vem ao nosso encontro em pequenos comboios de três ou quatro carros. Alguns quilômetros mais adiante, há gente trabalhando na pista. Estamos chegando à nossa aldeia. Já dá para a avistar o armazém que, por causa da sua localização na curva, nos tira a visão da estrada. Já me regozijo da visão que vai descortinar-se depois da curva, a paisagem da minha infância: fazendas a ambos os lados da estrada e do rio que, colados um no outro, atravessam toda a aldeia; pontes levadiças; o rio onde pescávamos no verão e patinávamos no inverno, depois de cinco noites de geadas; os pastos com vacas, ovelhas e cordeirinhos; a casa inclinada, onde o Tiago, como único da família, havia nascido.
A casa velha já não existe mais. Ela estava afundada por demais. Era muito úmida e já não oferecia nenhum conforto. Pai e mãe, com os filhos que ainda moravam em casa, mudaram para uma casa nova, no núcleo da aldeia; uma casa de esquina, com um jardim imenso de lado e atrás. Uma casa grande e seca, sem umidade e sem tábuas de madeira no sótão que rangem ao sair da cama.
Falta pouco para chegarmos. Tiago conduz o carrinho pequeno na curva. Na pista da esquerda aproximam-se dois caminhões e...
‘Cuidado, Tiago, cuidado! Aquele doido vai ultrapassar os caminhões na curva. Freie, Tiago, ele está na sua pista. Pise no breque, ele vem em cima da gente!’

Chegando neste ponto, na minha imaginação, saio do carro dele. Só o meu irmão, Tiago, sofre o acidente. As marcas da brecada na curva mostram onde as rodas do seu minicarro deslizam na berma da estrada; onde Tiago luta pela vida; onde ele tenta fazer voltar o carro para o asfalto; onde o pé escorrega do pedal de freio e ele perde o controle sobre o carro que, desgovernado, volta para o asfalto e choca com o veículo na contramão.
Tento sentir a pancada da cabeça dele contra o pára-brisa. Vejo a mecha branca que se avermelha pouco a pouco. Durante longos minutos continuo na cama, com a respiração contida.

Na mesma semana, no sábado, o Tiago foi enterrado. Um dia antes, a justiça liberara o corpo, que foi levado para a igreja, onde costuma ser o velório. Como vítima de um delito de trânsito do qual o autor prosseguira o seu caminho, o caixão dele foi lacrado. Alternadamente, olhávamos para o Tiago através da janelinha na tampa do caixão. O enfermeiro no hospital estava com razão: ‘o acidente deixou poucas marcas’. Em casa reinava uma atmosfera quase alegre. O médico havia prescrito um grande vidro de tranqüilizantes de que todos nós lambiscávamos com certo prazer. Minha mãe chorava e ria ao mesmo tempo ao dizer: ‘agora ele tem que ficar na igreja até amanhã e antes não ia nem a pau.’
Sábado. Jovens tocam música pop na igreja. A guitarra vermelha do Tiago está no meio deles, mas ninguém a toca. Toda a comunidade canta ‘Blowing in the Wind’ enquanto carregamos, depois da Missa, o caixão para o cemitério. Ele é colocado na mesma cova onde, três dias antes, o rapaz de vinte anos fora enterrado.
No dia seguinte, volto ao cemitério. A cova está fechada. Os buquês do rapaz e do Tiago cobrem, numa composição íntima, a terra recentemente removida. No meio brilha a coroa preta com copos-de-leite.