sábado, 24 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A bicicleta do meu pai

A bicicleta do meu pai era uma bicicleta sólida. Vendo-a na minha imaginação vejo-a pintada de preto. Dá para ver que o meu pai mesmo fizera isso, pois a pintura não está totalmente perfeita. Vejo tinta escorrida, marcas de pincel e pequenas bolhas de tinta. Além do mais, o fio elétrico da lanterna também está pintado. Lembro-me bem disso, pois muitas vezes peguei carona, sentada no cano com as duas pernas para um lado e levemente apoiada no guidão. Eu tomava cuidado para não apoiar demais, pois a dificuldade de manobrar o guidão com o meu peso em cima fazia meu pai resmungar.
Todos os dias, ao raiar do sol, montado nesta bicicleta preta, ele ia para o seu trabalho numa cidade vizinha. Pensando bem, não me lembro de ter presenciado alguma vez a sua saída para o trabalho. Quando nós, crianças, descíamos às sete horas do sótão onde dormíamos, ele já estava trabalhando na fábrica de fundição de ferro, a fábrica fedida, como ele costumava dizer.
O que eu presenciei muitas vezes foi a volta do trabalho. Eu estava, então, brincando na rua ou pescando em algum riacho, depois das aulas na escola. Por volta da hora da janta, ele chegava pedalando, geralmente com um primo, companheiro de trabalho na fábrica, com os dois cotovelos apoiados no guidão, na ciclovia que acompanhava o canal até a nossa cidade. Cada vez que o via chegando, eu sentia uma sensação de orgulho no meu peito. Aí vinha o meu pai. Claro que eu o conhecia bem dentro de casa, na sala, nas refeições, trabalhando no jardim, cuidando do porco, mas vê-lo na rua pública era diferente. Aí ele estava diante dos olhos do mundo. Mesmo que este mundo não fosse mais do que algumas fazendas, um caminho em cima do dique ao longo do canal, um camponês puxando uma carrocinha carregada de latas de leite e, às vezes, um ônibus. Aquele que vinha pedalando aí era meu pai! E quando ele me via com seu rosto coberto de poeira, cansado do longo dia de trabalho, o seu sorriso produzia rugas em torno dos seus olhos e gritava em alta voz: “Oi, xará”. Aí eu ficava ainda mais orgulhosa, pois sabia que ele dizia isto só para mim. (Nós dois tínhamos o mesmo nome: Adriano e Adriana). Aquilo me dava a sensação que eu tinha uma ligação especial com ele. Abandonava a minha pescaria ou brincadeira e corria com ele os últimos cem metros até em casa, onde a minha mãe estava cortando o pão para o lanche.

Um dia, estávamos todos em torno da mesa. Era um dia lindo no mês de junho em que o sol num céu azul, despejado de nuvens, secava montes de feno cheiroso montado sobre cavaletes. E o pai ainda não tinha chegado. Todos juntos já tínhamos gritado em coro: fome, fome! Já tínhamos batido com os pratos na mesa, mas ele tardava em chegar. Já eram quase sete horas! Finalmente, a mãe deu licença para começarmos a comer, embora isto fosse incomum. A mãe olhava cada vez mais nervosa para o despertador que estava em cima do armário. 
Quando tínhamos comido a metade das fatias de pão, soou, de repente, um tremendo cantar de pneus de bicicleta sobre o cascalho fino que cobria a descida da rua até a nossa casa. Alguém descia a toda velocidade o dique em direção à nossa casa que ficava ao pé do dique. Um vulto passou como um relâmpago em frente da janelinha da cozinha. E, então, ouvimos um baque suave. Assustados, corríamos para fora e víamos o pai, deitado na cerca viva e sua bicicleta por cima dele. Quando ele saiu gemendo de baixo da bicicleta, a primeira coisa que chamou a nossa atenção era uma boquilha de cigarrilha no canto da sua boca. Meu pai com um charuto? Isso nunca tínhamos visto antes. E quando ele começou a falar resmungando, percebemos que ele tinha bebido. Que coisa mais estranha, pois bebida e meu pai eram duas coisas que não combinavam de jeito nenhum. Lá estava ele, sentado no chão, desalinhado, com folhinhas da cerca viva na sua boina, mastigando a boquilha da cigarrilha.
A razão mais profunda desta chegada singular em casa naquela noite não ficou clara para nós. Mas meu primo que o acompanhou de bicicleta para casa nos forneceu depois os pormenores que faltavam.
O que acontecera foi o seguinte. Como todos os dias, depois do dia de trabalho na fábrica o pai montou a sua bicicleta, para ir para casa juntamente com alguns companheiros. Um deles tinha celebrado naqueles dias as suas bodas de prata de casamento e conseguiu convencer o pai e o primo para comemorar isso no Bar Agrícola, situado numa rua por onde tinham que passar. O verão estava no ar e eles estavam contentes de terem terminado mais um dia naquela ‘fábrica fedida’. Uma pequena distração não faria mal a ninguém. Após algumas recusas, o meu pai até consentira em tomar um drinque. Em alguém que nunca bebe, o efeito pode ser inesperado. Desafiado, ele até atreveu-se a jogar uma partida de bilhar. Vinculado ao jogo, porém, estava que, depois de cada partida, todos tomassem um drinque e que o do vencedor fosse grátis.  Assim meu pai ficou arrojado. E se não foi porque ele queria mostrar aos outros o que era jogar bilhar, certamente era porque permitia que despercebidamente enchessem o copinho dele com drinques gratuitos. E para selar mais ainda a alegria da festa, ele foi declarado o grande vencedor e colocaram, como troféu, uma cigarrilha na sua boca. Fumegando empreendeu a viagem de bicicleta para casa. Meu primo disse que ele começou a andar cada vez mais devagar e que meu pai achava que isso fosse por causa do charuto. Mas, conforme meu primo, fazia tempo que a cigarrilha tinha se desprendido da boquilha. Finalmente, chegaram em casa, onde meu pai foi parar na cerca viva.
A preocupação da mãe se transformara em raiva. Balançando a cabeça ela deu uma volta em torno dele. Ajudaram-no a levantar-se, o que não era nada fácil. E no momento em que ele começou a sentir-se um pouco melhor, nosso vizinho, um camponês, desceu a trilha até a nossa casa. Que chato que justamente ele tinha que ver o meu pai naquele estado. Mas não era bem por acaso. Meu pai havia prometido de ajudá-lo com o armazenamento do feno para o inverno, mas não tinha aparecido. Portanto, ele veio cobrar o cumprimento da promessa. “Puxa, Ari, por que esta demora? Você não me prometeu de ajudar?” Meu pai olhou para ele com olhinhos pequeninos, tirou a boquilha da boca e disse: “por que não põe fogo neste feno ...?!”


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