A VISITA
Parte 3
Lá fora, o dia começa a clarear. O
comprimido surtiu efeito e a anciã consegue respirar um pouco melhor; um
bem-estar tomou conta dela, enquanto seus olhos se mantêm fechados. O edredom
com recheio de penugem não pesa no seu corpo. A Helena o comprou alguns dias atrás. Cobertores são pesados demais, escorregam da cama e ela,
Cornélia, não tem forças para puxá-los de volta. Ela é levada por um sonho:
sobe uma escada íngreme que a conduz ao sótão da antiga casa e tira os
cobertores das camas. Com os braços lotados desce a escada. Os seus pés
reconhecem cada degrau. O ar fresco da primavera penetra na casa pela porta
aberta. Todos os anos, ela pendura todos os cobertores no varal para arejar. Um
espetáculo colorido: duas fileiras longas de cobertores, onde seus filhos,
agitados, brincam de esconde-esconde.
‘O edredom é bem levinho, não é,
mãe?’, falara Helena.
'Ah sim, é muito gostoso’,
murmura a anciã. Ela não sente o peso e também não sente mais a dor no seu
braço quebrado.
Ela abre os olhos e olha
apaixonado para Adriano que está sentado na cadeira dela. Como sentiu a falta
dele nesses últimos anos! O namoro deles começou na época da crise dos anos
trinta. Foi durante a quermesse anual na aldeia que o encontrou pela primeira
vez. À noite, após a festa, ele a levou para a casa dela.
Como ficou apaixonada por aquele
homem com seus olhos travessos de cor marrom e sorriso largo nos lábios! Nem o
vigário conseguiu mudar o seu estado de espírito. ‘Termine esse namoro, Cornélia,’ ele
dissera. ‘Esse rapaz está desempregado e não é
porque o prato é bonito que ele está cheio de comida!’
‘Adriano!', ela diz com
dificuldade; os seus lábios ressecados estão colados um no outro.
‘O que foi, Cornélia?’ ‘Nunca me
arrependi de ter acompanhado você.’
'Nem eu, Cornélia, você foi uma
mulher e tanto para mim. Sempre a primeira a levantar de manhã. No inverno, acender a estufa.
Preparar o café da manhã. E quando eu, ainda
cedo, estava tomando o meu café da manhã antes de ir ao trabalho, você já
estava com a camisola aberta dando de mamar a um bebê. Sabe, Cornélia, eu
adorava olhar para essa cena: você com um pimpolho nos braços. A casa ainda
estava afundada no silêncio e os outros filhos dormiam no sótão. Ouvia-se
apenas o gluglu da criança que tomava o seu leite.’
Ela volta a sentir a criança que
suga no seu peito; uma sensação agradável que percorre o corpo e termina em
algum lugar no baixo-ventre, enquanto os pequenos dedos da criança brincam com
a sua pele. A
lembrança a faz sorrir.
'Então você curtiu muitas vezes,
Adriano, pois juntos tivemos muitos filhos!’
'A culpa é do vigário’! A sua voz
demonstra certa revolta.
'Sem dúvida, Adriano. Mas não me
diga que você não gostava.’
'Você tem razão, Cornélia, você
sempre foi maravilhosa e as nossas noites de amor foram inesquecíveis.’
'Seu bobo!’ Ela ri a ponto de
sentir dor nos seus lábios ressecados.
Falar
a cansa. Ela fecha os olhos e mantém-se
imóvel. Cachos prateados envolvem a sua cabeça. A sua pele é branca como cera e
as rugas no seu rosto são profundas.
É verdade, Adriano a deu muitos
filhos, dos quais criou dez com muito prazer: oito rapazes e duas moças. Principalmente,
quando eles ainda eram pequenos, ela curtia os seus filhos. Graças a Deus,
todos se saíram muito bem. São inteligentes e todos aprendem com facilidade. Todos
os domingos, ela dava a cada um dez centavos para a biblioteca do pouco
dinheiro de que podia dispor. Todos se tornaram sabichões. Às vezes até teimosos, querendo saber mais do que os pais. O
fato de eles quase não mais frequentarem a igreja foi meio difícil de aceitar,
mas é o novo tempo, difícil de combater.
Devaneando, a anciã relembra a
sua história de vida, enquanto os seus olhos afundam cada vez mais nas órbitas
e a pressão no peito se torna cada vez mais pesada. Desde a morte do seu filho
Tiago num acidente trágico não sentira uma dor tão forte.
'Não está muito machucado, não é?
Às vezes, é bem pior.’ A voz do enfermeiro que puxa a gaveta de dentro da
câmara frigorífica soa muito longe.
Junto com Adriano, ela está no
mortuário semiescurecido. Eles seguram um ao outro. Diante deles, está o seu
filho, Tiago, pálido e silencioso. Mechas de cabelos estão coladas na testa úmida. Os vestígios de sangue foram mais ou menos removidos. Num
reflexo, ela se aproxima. Quer tomá-lo nos seus braços e consolá-lo. Tirá-lo daquele ambiente gélido.
Uma mão a impede. Não, não pode tocar nele. ‘O
corpo foi embargado. O IML ainda vai fazer a autópsia. A
senhora entende?’ Sem entender bem as palavras do enfermeiro, ela sai
resignado da casa mortuária, deixando o Tiago para trás. Ela é uma mulher inteligente.
Adriano não conseguiu aceitar a
morte do seu filho. Em um só dia tornou-se um homem velho. ‘É mais fácil ter
dez filhos do que perder um,’ falaram um para o outro.
‘Adriano!’ Ela mantém os olhos
fechados. ‘Que foi, Cornélia?’ ‘Tivemos que trabalhar duro e não foi nada fácil.’
‘Sem dúvida, a nossa sorte foi que você sabia o que era arregaçar as mangas e
que você tinha prazer no que fazia. Ao contrário, a gente teria passado um mau
pedaço.’ ‘Também você deu o seu sangue na sujeira daquela fábrica, Adriano. E
olhe agora para mim: não consigo fazer mais nada. O meu braço está quebrado e
não tenho mais força nenhuma nas mãos.’ ‘Cornélia, querida, vem. Eu te tomo nos meus braços. Está
na hora de a gente ir.’
Surpresa, os olhos da Cornélia se
fixaram no branco do teto.
Lá fora, um novo dia começou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário