terça-feira, 9 de novembro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - (FINAL)



12 (Final)

Adriana Oliehoek

1954

A doença nem sempre está presente. Só de vez em quando. As meninas andam de braços dados com suas amigas preferidas no pátio da escola e cochicham nos ouvidos umas das outras. Quando pergunto se querem brincar de queimada, elas se recusam e mostram uma cara de desgosto: ‘Não, hoje não estou com vontade’. Elas também não querem participar da aula de ginástica. Ficam sentadas num banco e olham como nós, lá no alto dos espaldares, apoiando em um pé e segurando com uma mão, descrevemos círculos cada vez maiores no espaço com a perna e o braço que estão livres.
   Eu sei que tem a ver com um pano atoalhado que outro dia achei embaixo da cama em que durmo com a minha irmã. O pano estava cheio de manchas escuras e dissipava um cheiro horrível.
   ‘Na próxima vez, ponha isso numa balde com cloro, no quartinho de despejo’, adverte a mamãe à minha irmã. Tanto a minha irmã como eu fazemos uma cara de asco.
   Espero que não seja contagioso, pois não quero adoecer de novo. No último outono, tive pneumonia. Parecia que estavam passando filmes na minha cabeça. Levou três dias para eu reconhecer a sala onde me colocaram com cama e tudo.
   ‘Ainda bem’, disse o médico, ‘que agora temos penicilina com que eu posso curar você. Alguns anos atrás, eu não teria conseguido’. Durante uma semana, eu ganhava todos os dias uma injeção. Durante seis semanas não pude ir à escola. Agora, vou toda a semana ao consultório do nosso médico. Os meus ouvidos sempre estão inflamados. Ele me puxa contra o seu corpo, olha com uma lâmpada no meu ouvido e pinga algumas gotas de óleo. É por causa das minhas amídalas que são muito grandes. Mas eu participo normalmente das aulas de ginástica. 
   Trees tem. Cobie tem. Jannie... E Berti também está tão misteriosa ultimamente. Só a Hannie e eu não temos. Nós somos as mais novas e nunca repetimos de ano. A caminho da escola para a casa, elas conversam e riem tontamente sobre os rapazes da aldeia. Ouço também o nome do meu irmão, Otto. Meio envergonhadas, elas acham que já têm idade suficiente para conseguirem licença dos pais para irem à quermesse noturna.
Falta uma semana para que a quermesse anual e a corrida de cavalos afundem a aldeia numa cacofonia de sons. Ward e o Jaap estão ansiosos. Eles brincam de corrida de cavalo com bolinhas de gude que têm os nomes de cavalos imortais como Princess, Allouez e David O. Todos eles campeões de curta distância.
   ‘É dada a largada e...’, dois a dois os ‘cavalos’ rolam sobre o vinil, acionados pelo declive da casa onde o rodapé é a linha de chegada.
  
As primeiras carruagens já estão chegando na aldeia. Num pasto atrás da igreja, as barracas estão sendo levantadas e os aparelhos de diversão montados.
   ‘O carrossel está quase pronto’, conta Otto durante o jantar. Esta atração está presente todos os anos. O que vier a mais sempre é uma surpresa. Eu adoro o carrossel. Hannie e eu pegamos uma cadeirinha da fileira mais externa e aumentamos a aceleração centrífuga, empurrando-nos mutuamente. As correntes que seguram as nossas cadeirinhas se esticam e voamos com cabelos esvoaçados por cima dos visitantes da quermesse. ‘A roda-gigante também voltou’, o Otto continua o seu relatório.
   ‘Viva!’ A minha atração favorita voltou depois de dois anos de ausência’. 
   ‘Há também uma tenda com mulheres-cobras e malabaristas.’
   ‘Eu vi quando estavam treinando’, diz Dirk. ‘Aquelas moças parecem de borracha. Elas colocam as duas pernas no pescoço’.
Juntamente com a Hannie, vagueio entre as barracas com sorvetes, algodão doce, bolos, enguias defumadas e arenques.
   ‘Prêmio na certa! Prêmio na certa!’ Gritam os barraqueiros e balançam um feixe de cordas. Outros oferecem bolas de pano para derrubar latas de conserva empilhadas numa tábua dentro da barraca. Cinco bolas por dez centavos. A minha mão conta as moedas no bolso da minha saia. A mamãe nós dá todos os dias seis moedas de dez centavos.
   Prazerosamente chupamos o pirulito de sal amoníaco. A ponta porosa do doce causa comichão na minha língua: estranho, mas gostoso. Admiradas olhamos para os braços musculosos dos homens que desafiam uns aos outros em atrações de demonstração de força. Mais longe do que isso, o nosso interesse por homens ainda não vai.
   Ao lado da pista de corrida de cavalos, a Hannie e eu damos gritos de incentivo a nossos cavalos favoritos: ‘Vamos, Gleide! Corra, Hannover!’
   Quando, no fim do terceiro dia da quermesse, eu procuro um lugarzinho para fazer xixi sem ser vista, eu surpreendo o Otto com a Trees atrás da barraca de um vendedor de doces. Otto enfia a língua na boca da Trees, enquanto a sua mão mexe nervosamente debaixo da saia dela.  
 São minhas primeiras férias de verão sem a minha prima Lena. Se não preciso tomar conta dos meus irmãozinhos menores eu vou treinar. Agora eu sei o que quero: dançar no Balé Nacional. Quero ser uma prima-dona igual à Anna Pavlova. Se os meus pais não tiverem condições de pagar a escola de balé, eu posso acompanhar o circo e trabalhar como mulher-cobra.
Todos os dias eu treino o spagat frontal. Deixo o meu corpo descer com a perna esquerda esticada para frente e a direita para trás até os fundilhos tocarem o chão. Em seguida, faço a mesma coisa, mas agora com a perna direita para frente e a esquerda para trás. Faço alguns movimentos para cima e para baixo, alongo os músculos das minhas coxas e deixo me cair para frente com as mãos acima da cabeça, representando a morte de um cisne.
   ‘Cuidado para não rasgar’, diz o meu pai quando ele me vê treinando. Eu estudo os passinhos de dança que copiei das mulheres-cobras na quermesse. Exercito a arte de equilibrar-me no batedouro, que propriamente serve para bater os tapetes, e, com os braços abertos, ando sobre a borda da cerca meio apodrecida que faz o limite do nosso terreno com o do vizinho. Depois das férias, voltando para a escola, percorro grandes distâncias praticando saltos giratórios. Com orgulho mostro a Hannie e Trees como consigo fazer um salto giratório lateral, num movimento fluido.
 Todos esses exercícios endurecem os meus músculos. Também em torno dos meus mamilos. Dois caroços desfiguram o meu corpo esbelto e bonito. Eles tremem, sacodem e atrapalham quando corro ou faço os meus exercícios.
   ‘Que coisa mais feia’, diz a minha irmã. ‘Mãe, a senhora tem que comprar um sutiã para ela’. O que ela tem a ver com o meu corpo. Só porque ela tem cinco anos a mais ela pensa que pode mandar em mim. Por que ela não cuida dela mesma e aprende a levantar da cama na hora? No mínimo três vezes por semana, o ônibus fica esperando a minha irmã na frente da nossa casa. Ela enfia as meias na bolsa e com um pedaço de pão nas mãos ela corre para o ônibus para ir trabalhar. Quase todos os motoristas são amiguinhos dela e ficam caídos por causa do rostinho bonito dela.
   A mim ela não engana. Às vezes, sinto ódio dela, como na primavera passada. Só para me chatear – ela sabe que eu gosto muito da nossa gata – ela enfiou o pé debaixo da barriga da mesma, a levantou e chutou o bichinho do telhado do quarto de despejo. Ela riu e disse: ‘Não acontece nada! Um gato sempre cai de quatro’.  Mas, no dia seguinte, nasceram seis gatinhos sem pêlo e mortos. Só porque a minha mãe quis escutar essa menina chata, tenho que usar agora um sutiã. Eu me envergonho de andar com esses paninhos de algodão que apertam e roçam a minha pele. Não quero ter seios. Não quero que os rapazes falem de mim. Sou ainda uma menina.
Certo dia, ao fazer os meus exercícios, sinto algo de pegajoso na minha calcinha. Vejo uma mancha vermelho-escura. Por um momento penso no aviso do meu pai, mas, quase ao mesmo tempo, eu sabia o que era: estou com aquilo! Primeiro um sutiã e agora ‘aquilo’! Meu Deus, o que está acontecendo? Já não posso mais confiar no meu corpo. Está crescendo cabelo onde eu não quero e eu sangro sem me ferir. Afinal, eu sou dona de mim mesma ou não?
   Será que há coisas e pessoas que podem interferir na minha vida sem me consultar? E o vigário tem o direito de dizer o que ele falou outro dia para a minha mãe? Ele veio queixar-se sobre a minha irmã. Ela tinha transgredido as suas regras e fora à aula de dança sem ter dezoito anos. Foi numa segunda-feira que ele veio e eu estava ajudando a minha mãe torcendo as roupas que ela tinha lavado. 
   ‘E essa menina aí’, disse ele apontando para mim, ‘é bom segurar para a senhora mesma’.
O que ele quer dizer com isso? Então, as pessoas não são donas de si mesmas?  Será que a minha mãe tem razão quando ela diz: ‘Você não é dona nem do seu próprio nariz’.
 Pego uma calcinha limpa do armário e a suja enfio no saco de roupas velhas e rasgadas que está no quartinho de despejo. Não quero que alguém saiba que estou com ‘aquilo’. Mas no dia seguinte ‘aquilo’ ainda está aí. O outro dia também. E mais um dia. Já peguei a minha última calcinha limpa e ‘aquilo’ não vai embora. Humilhada, abandonada por meu próprio corpo, conto tudo à minha mãe. Ela me leva para o sótão, que é o nosso dormitório. Ela coloca uma cinta na minha barriga e mostra como devo fixar, com um pequeno alfinete de segurança, um pano atoalhado entre as minhas pernas.
   ‘Você virou moça agora’, diz ela.
   Algumas semanas depois, na escola, tenho aquilo de novo. A minha barriga dói. Peço licença para ir ao banheiro e fujo para casa. Deito na cama dos meus pais e observo a minha mãe que está passando a roupa. Cólicas lancinantes fazem o meu abdômen endurecer.
   ‘Não é nada grave’, diz a mamãe, ‘faz parte’.
         Corro até o banheiro e de volta para a cama. ‘Não quero isso! Não quero isso!’, grito para ela.

'Acho que vem vindo uma contração'.
   'Uma contração? Por favor, senhora, faça força’, diz o médico. Respiro com dificuldade. Inspiro profundamente e aspiro todo o oxigênio do universo.
   'Sim', diz o médico, 'continue fazendo força! Aguente firme!'
   'Ótimo! Maravilhoso!'
   'Enfermeira, o aparelho está ligado, está?’
   'Lá vem, lá vem!'
   'Muito bem, senhora, vá em frente!'
   'Óóóh...', suspira uma amiga.
   'Formidável! Ótimo! Aguente mais um pouco'.
   'Desligue o vácuo, enfermeira!’
   'Empurre mais um pouco, senhora. Devagar, agora!'.
   'Isso! Mais um pouquinho'.
   'Falta pouco!'
   'Isso...!'
   Com sons úmidos, a criança se liberta do meu ventre. O médico a levanta entre as minhas pernas.
   'Um menino!', eu grito.
   'Isso mesmo', dizem as minhas amigas.
   'Que lindo! Que coisinha mais fofa, que belezoca...!
   Berrando, o meu filho dilacera o silêncio. Ele procura ar. Enche os seus pulmões com oxigênio: inspira, expira, respira...

Tenho quarenta anos.


Epílogo
O menino que acaba de nascer na história da Kala Kala, hoje é doutor em informática, trabalha numa universidade em Boston, Estados Unidos, e completou ontem 29 anos.
Parabéns, Frans Adriaan, que teve a honra de ser o protagonista da história da sua mãe.
Parabéns, Adriana, minha irmã, e obrigado por compartilhar conosco seus sentimentos relacionados com vida e morte.
André Oliehoek

sábado, 23 de outubro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - 11



11

Adriana Oliehoek

A carruagem puxada por dois cavalos pretos para na minha frente. Eu entro e devagar as rodas se põem em movimento. Ela me conduz ao hospital, ao mortuário. Aos meus pés, num caixão, está o meu irmão Jaap. Totalmente imóvel. O seu rosto está branco. Madeixas úmidas colam na sua testa. Desajeitadamente, tentaram limpar os vestígios de sangue.
   ‘Não dá para ver muita coisa’, diz o enfermeiro que tirou o caixão da câmara frigorífica: ‘Geralmente o estrago é bem maior’.
   Eu me inclino e quero pegá-lo nos meus braços. Aquecê-lo. Tirá-lo deste ambiente gélido. O enfermeiro me impede: ‘Não, não toque nele. O corpo ainda não foi liberado. Vão fazer obdução. Entende?’
   Obdução? Estranhando a palavra, procuro prestar atenção a outras palavras obscuras que ele deve ter encontrado no seu curso de enfermagem. Sem me opor, deixo o Jaap onde está.

1953

A minha prima Lena gosta de estudar. Ela é uma menina inteligente. O diretor da pequena escola da aldeia cuidou para que ela pudesse estudar no ensino médio. Terminando o médio, ela pode continuar a estudar para professora. Meu tio e a minha tia só suspiraram: ‘Quem vai pagar isso?’
   As freiras na minha escola não encaminham ninguém. Depois do sexto ano do ensino fundamental, simplesmente passei para o sétimo. Isso é comum na nossa escola. A tarefa mais importante para a mulher é o lar. Portanto, eu aprendo a cozinhar, costurar e fazer tricô. Durante vários minutos fico na fila em frente da mesa da irmã professora para mostrar-lhe uma costura pespontada. Quando é aprovada, posso continuar. Os meus pudins sempre saem errados. Sempre murcham. Depois da aula, tenho que comer os meus próprios pudins, mas não gosto de pudim. Num momento de distração por parte da irmã professora, ponho tudo num guardanapo que enfio no bolso do avental e, mais tarde, o resultado da minha arte culinária vai para o vaso sanitário. Certo dia, visto-me de coragem e vou falar com a irmã Brigita, a diretora da escola feminina.

Seis anos antes, ela me buscou com mais cinco outras crianças no jardim da infância, onde eu brincava com argila, cantava canções bonitas e rezava por nossos soldados na Indonésia. Ela nos leva para o primeiro ano do Ensino Fundamental e anda com passinhos rápidos na nossa frente sobre a trilha que une o Jardim da Infância com o prédio do Ensino Fundamental. Os seus tornozelos finos escondidos em meias pretas aparecem, a cada passo, por um instante por debaixo do seu hábito preto. Na metade do caminho, ela se vira e olha com um sorriso para nós, enquanto o tecido fino do seu véu esvoaça no seu rosto. Durante um momento, eu penso que um anjo desceu do céu, na verdade um que é vestido de preto, mas isso fortalece o meu pensamento que, além de homens e mulheres, ainda existe uma terceira categoria: dos que não precisam fazer necessidades fisiológicas.
   Enquanto eu fico todos os dias pulando na minha carteira, com as pernas apertadas e um dedo levantado, aguardando a licença tão esperada, nunca vejo uma freira entrar ou sair do toalete. Elas parecem estar inegavelmente dispensadas da necessidade humilhante de ter que abaixar a calça e de defecar, enquanto eu, atacada de cólicas intestinais, cada vez de novo sou obrigada a essa caminhada vergonhosa até o banheiro. Lá, desesperada, olho em volta e vejo as manchas marrons na parede: de novo não tem papel higiênico!

A irmã Brigita está sentada à sua mesinha na sala em que ela dá aula às duas últimas turmas do ensino fundamental. Já passou das 15.30 horas e as carteiras diante dela estão vazias. Devido à minha timidez, o meu rosto queima quando resolvo abrir a boca para perguntar: ‘Será que eu ainda posso ir para o ensino médio’?
   No silêncio que segue, quase ouço cair as partículas de poeira que volteiam na luz solar da tarde. Durante segundos – ou serão minutos –observo o olhar pensativo na sua face serena. Finalmente, os seus lábios começam a se mover e a sua boca se abre: ‘Não, não dá mais’ soa a sua voz suave, mas decidida. Eu aceito a minha sina. É a minha própria culpa. As matrículas para o ensino médio devem ser feitas no final do sexto ano, assim como Lena fez. Eu havia optado para fazer mais dois anos no ensino fundamental para aprender a arte de cozinhar e costurar.

O ano de 1953 é um ano desastroso. No mês de janeiro, a minha mãe ausenta-se muitas vezes de casa para ficar ao lado do meu avô, que está à beira da morte. De manhã, ela volta cansada: ‘Não, ainda não.’ Sussurrando ela conversa com meu pai, com a vizinha e com a empregada. Um câncer rói o estômago do meu avô. O homem que, quando criança, queria ser professor, mas que a sua vida inteira ganhou o pão para a sua esposa e os oito filhos como empregado numa fazenda, não quer morrer. Só mesmo, quando o seu rosto quase se afundou nos seus olhos grandes, ele desiste da luta. O vovô não surpreenderá mais ninguém com seus debates políticos e, no réveillon, ele não levantará mais da sua cadeira às cinco para a meia noite com as palavras: ‘Já está tarde, vou dormir’.
O vovô nunca mais dormirá nem acordará. Nem a terrível tempestade no início de fevereiro o perturbará. Eu, sim, acordo. O vento uiva e esbraveja em redor da nossa velha casa. Furioso, ele sacode o telhado acima da minha cabeça. As vigas de madeira gemem e as telhas despencam com grande estrondo no chão, ao lado da casa. De repente, a silhueta da minha mãe surge na porta. Por causa do barulho não ouvi que ela havia subido para o sótão. ‘O tempo está muito feio’, diz ela, ‘vista algo quente e vamos descer’.
   A sala está fria. O carvão na estufa está praticamente apagado. Eu tremo de frio, enrolada no meu casaco de frio que vesti por cima da minha camisola. Os meus irmãos com rostos lívidos olham sonolentos para frente. Os menores ficaram nas suas camas. O meu irmão mais velho saiu com o meu pai para ajudar no reforço dos diques que cercam a aldeia e que ameaçam romper-se pelas águas enfurecidas.
   A minha mãe benze a casa. Com um galho do Domingo de Ramos do ano anterior, ela joga água benta em forma de cruz em todos os cantos de cada cômodo. Em seguida, se ajoelha no duro tapete de fibras de coco. Juntos rezamos um terço e pedimos a todos os santos do céu para que nos protejam. Já está clareando, quando a tempestade começa a diminuir em intensidade. No dia seguinte, ouvimos pelo rádio que o mar rompeu as dunas perto de Scheveningen. O pôlder em que nós moramos fica a seis metros abaixo do nível do mar. Felizmente, o dique que cerca a nossa aldeia resistiu e conseguimos escapar ilesos do maremoto. Mais tarde, os jornais e revistas semanais mostram o estrago que foi feito em outros lugares. Casas inundadas, cadáveres de vacas e cavalos boiando, crianças com cabelos molhados recebendo roupas secas e pessoas olhando diante de si com olhares vazios. Mais de mil e quinhentos pessoas morreram afogados.
   No início de março, há uma trégua na guerra fria. Morre o Stalin. O vovô já não precisa estar com medo. O perigo vermelho que ameaça a partir da Rússia a paz do Ocidente está escondido atrás do papel de parede da nossa casa.
O meu pai protegeu as paredes da sala contra a umidade com sacos de juta, nos quais ele colou jornais velhos. Em um desses jornais está a última foto de Stalin. Com uma mistura de temor e admiração, despeço-me desse tirano. Ele está com a cabeça para baixo e suas pernas apontam para o forro. O que chama a minha atenção são as suas mãos que não estão postas, assim como um cristão fica no caixão, mas estão ao longo do corpo. O seu bigode espesso ainda está preto, mas seus olhos estão fechados. Stalin está morto. Aliviada vejo como o meu pai cola uma faixa de papel de parede por cima dele.

O mês de dezembro está chegando. Juntamente com a minha mãe, faço as compras para a festa de São Nicolau na cidade vizinha. No centro, encontramos a nossa avó com a minha prima Lena. A minha tia está com uma hérnia de disco e tem que ficar de cama durante algumas semanas. Por isso, a avó e a Lena fazem as compras este ano.
   O primeiro trimestre está terminando e a Lena receberá um boletim bonito antes das férias do Natal. Como sempre quando não nos vimos algum tempo, ela reage timidamente à minha saudação. A sua imagem – uma figura fina vestida com um casaco de gabardina azul-escuro esperando na luz de um poste pelo ônibus que não deve tardar – continua fixada na minha retina. 
   Um dia depois do Natal, a Lena quer ir com o pai e o irmão mais velho para uma festa de família. A minha tia acamada opõe-se a essa ideia: ‘Filha, estou precisando de você em casa’!
   A Lena chora e bate o pé. A cor dos seus olhos muda para cinza-escura com verde: ‘Vocês não me dão licença para nada! Sempre tenho que ajudar! Na horta! Em casa! Fazer compras! Quero sair uma vez com o meu pai!
   A minha tia suspira: ‘Está bom, filha, pode ir com seu pai’. 
É noite. Para os menores, a festa do Natal acabou. A minha mãe fechou o livro do qual ela lera para eles e as crianças sopraram as velinhas junto ao presépio, colocando, cuidadosamente, uma mãozinha atrás da chama. Na mesa, no meio da sala debaixo da grande lâmpada, três menininhos esperam sentados, vestindo apenas uma cueca e uma camiseta, para que a mamãe os termine de preparar para a noite. A porta da sala se abre e a vizinha entra. Alguém telefonou para nós; um automobilista embriagado atropelou o meu tio e os dois filhos.
Ela está vestida com o seu melhor vestido, amarelo suave, com florzinhas brancas e rufos no pescoço. As mangas fofas deixam grande parte dos braços descoberta. As suas mãos finas estão postas sobre o seu corpo. A minha prima Lena transformou-se numa princesa de fada. Ela está, como Branca de Neve dos sete anões, imóvel e branca sob o vidro do caixão de carvalho branco. Temos doze anos e ainda não fomos beijados por algum rapaz. Coloco o meu buquê de frésias aos seus pés e espero pelo príncipe que deve vir logo para beijá-la. O pedacinho da maçã envenenada saltará da sua garganta, ela acordará, pegará a sua pasta e irá para a escola. (Continua)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 10


Adriana  Oliehoek

10

Estou presa numa marola, no ritmo da maré alta e baixa. A correnteza me arrasta para a profundidade de um velho oceano onde a vida e a morte se fundem.
   Quando, muitos anos atrás, a minha mãe perdeu o nenê na hora do parto, o médico falara minutos antes: 'Todos os habitantes deste planeta vieram assim ao mundo’. Agora, essas palavras não querem sair da minha cabeça.
   'Não vai demorar muito’, dizem manchas vagas acima do meu rosto.
   'Isso, ótimo!'
   'Força!'
   'Não desista!'
   No fundo da minha bacia, sinto a pressão do pequeno crânio. Ele faz um movimento giratório. A criança está colaborando. Meu filho quer nascer...


1953

Nestas férias de verão, pela primeira vez, a minha prima Lena pode dormir na minha casa. Finalmente, ela tem coragem de deixar a sua casa. O pai dela resmungou um pouco:
   ‘Ela vai fazer falta na horta’.
Ao fazer compras, eu a levo, cheia de orgulho, pela rua principal da aldeia. ‘Esta é a minha prima’, digo nas lojas.
‘Puxa, Jana’, diz a mulher do mercadinho, ‘dá para ver que ela é sua parente’.
   Chegando à praça diante da igreja, separada da rua por uma cerca de ferro com pontas de lança, mostro à minha prima como se deve passar por cima desta cerca. Segurando as pontas de lança, você se puxa para cima e coloca os pés entre as barras das pontas. Você tem que ficar agachada até encontrar o equilíbrio, erguer o corpo e dar ao mesmo tempo um grande pulo para o outro lado da cerca. A Lena, porém, hesita e o pulo não é grande o suficiente. Felizmente, ela não se machuca nas pontas de lança, mas teve que ir para casa com um enorme rasgão na saia. Com pontos bem pequenos, a minha mãe conserta a saia.
   No domingo, na igreja, procuramos um lugarzinho bem na frente. Pois, podendo ver o que o padre faz no altar, a missa não demora tanto. Depois da missa, a Lena quer ver o cemitério que fica atrás da igreja. Sem fazer barulho, andamos pelo lado externo da igreja, evitando acordar o cachorro do sacristão que está dormindo na porta da sua casa. Se ele acordar, ele pode dar alarme e o sacristão, certamente, nos proibirá de perturbar o descanso dos mortos.
   Sem problemas conseguimos entrar no cemitério onde, logo à esquerda, está uma cruz preta de ferro fundido. ‘Olhe’, mostro para Lena, ‘aqui estão enterrados os meus avós, pais do meu pai’. O túmulo está descuidado. Capim e ervas daninhas crescem em torno do buxeiro. Não é assim que podemos deixar os meus avós. Ajoelhadas na borda de cimento, começamos a limpeza do túmulo.
   ‘Como eles serão agora?’, pergunta Lena.
   ‘Pretos.’ Eu jogo um punhado de ervas daninhas debaixo da cerca do cemitério. ‘Ao menos que tenham sido comidos pelos vermes’.
   Ela para e se levanta: ‘Você já viu isso?’
   ‘Não, mas meu pai, quando era moço, ajudava às vezes o sacristão com a retirada de caixões velhos. Alguns corpos pareciam estar enterrados recentemente, só que eram pretos. E assim que sacudiam o caixão os corpos se desmanchavam e restavam apenas ossos’.
   ‘Credo, e onde deixaram esses ossos?’
   ‘Oh, simplesmente na terra, debaixo dos novos mortos’. O túmulo está limpo e com as mãos igualamos novamente a terra.         
   ‘Lamentável’, acha Lena, ‘quando você está morto há tanto tempo e ninguém visita o seu túmulo’. Eu proponho procurar flores nos outros túmulos. Atrás da igreja, perto do laguinho, vi vasos de vidros. Ninguém vai sentir falta, se pegarmos aqui e acolá uma flor, acha também a minha prima e ainda estaremos visitando todos os defuntos. Para tranquilizarmos a nossa consciência, conversamos um pouco com todo mundo:
- com os vigários, debaixo das suas lajes de mármore. Eles estão num porão e os caixões deles não precisam ser esvaziados.
- com homens e mulheres velhos que têm nomes conhecidos de famílias na aldeia.
- com as três crianças, um menino e duas meninas. Todos morreram no mesmo dia. Também, é muito imprudente querer visitar um avião alemão abatido pelos ingleses. É lógico que os ingleses iam voltar para destruir o avião totalmente, com metralhadoras montadas nos seus aviões.

Crianças têm um lugar próprio no cemitério. Algumas morreram logo depois do nascimento ou de uma doença grave. A maioria das crianças morreu afogada: no canal que atravessa a aldeia de ponta a ponta, numa vala atrás da casa ou, como aconteceu pouco tempo atrás com uma criança, no tanque de enxaguar roupas. A mãe havia colocado a roupa ensaboada no tanque e foi cuidar da comida na cozinha. Quando ela voltou para enxaguar a roupa, ela achou o filhinho afogado debaixo da roupa. Na sua lápide preta e reluzente está escrita com palavras claras e nítidas: ‘Aqui descansa o nosso querido Jantje. Ele alcançou a idade de dois anos’. A mesma idade que o nosso Freek tem agora. Vou ter que prestar mais atenção, pois ele é muito arteiro e ao lado da nossa casa há uma vala bem larga com meio metro de água sobre um metro de lodo.
   Lena quer ver também o túmulo dos meus irmãos gêmeos. Eles estão em algum lugar perto da trilha central. Não consigo achar o lugar certo. Na minha memória só existem retalhos de lembranças: a Missa dos Anjos, um pequeno caixão coberto de flores brancas e um buraco negro na terra onde alguém coloca o caixão com cuidado.
   ‘Eles não têm uma pedra?’
   ‘É muito caro. Meus pais não têm tanto dinheiro. A Tônia também não tem pedra. Ela também deve estar por aí, na terra sagrada’.
   ‘Mas ela foi batizada?’
   ‘Sim, pois o médico jogou logo um pouquinho de água benta sobre a cabecinha quando ela estava nascendo’.
   ‘E depois ela morreu?’
   ‘Sim, o parto demorou demais’.
   ‘Não é bom quando a criança fica muito grande’.
   ‘Pois é, é muito perigoso’.
   ‘E sua mãe também quase morreu’?
   ‘Sim, e, novamente, quando os gêmeos nasceram. O médico no hospital salvou a minha mãe fazendo transfusão de sangue diretamente de outra mulher no braço da minha mãe’.
   ‘Ainda bem, senão você seria órfã por parte da mãe e teria que trabalhar no duro como a Cinderela’.
   A minha prima tem razão. Sem a minha mãe, o mundo seria bem diferente. ‘Agradeça a Deus, por ter uma mãe tão boa’, disse, outro dia, a freira na escola. A minha mãe trabalha muito: lavar roupa, passar roupa, cerzir meias, limpar os quartos, fazer as camas, cozinhar e ela está amamentando, de novo, um bebê. Na primavera nasceu mais um irmãozinho, Louis. Ele é o número dez e está brincando, despreocupadamente, com seus pezinhos na caminha infantil repintada.
O berço não sobreviveu ao Freek. Ele é um menino que não para quieto. Sobe em tudo e mexe com todas as coisas que encontra no seu caminho.
   Eu não preciso ajudar em casa. O Otto é bem mais rápido do que eu e, em dois tempos, ele junta as migalhas de pão com a vassourinha e a pazinha. Ele faz compras sem reclamar, lava a louça e seca a pia. Eu nem vi que havia coisas na pia. ‘Pode deixar’, diz a minha mãe quando eu quero ajudar: ‘Eu faço isso dez vezes mais rápido. É melhor você tomar conta do Freek, assim eu posso continuar a trabalhar em casa.’ Portanto, eu brinco com o Freek, o Jaap e o Ward que também quer participar: ‘Eu vejo o que você não vê: é amarelo e vive na fazenda’ e as brincadeiras de roda: A rosa amarela é do bem querer; Boi, boi, boi, Boi da cara preta; Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...
   O Freek está adorando e no fim de cada cantiga ele grita: ‘Mais um, mais um...’ Eu adoro o meu irmãozinho e peço a ele: ‘me dá um abraço apertado’. Ele põe os bracinhos em torno do meu pescoço e quase me sufoca. Com a boca procuro a carne mole no seu pescoço e mordisco a sua orelhinha. No meio da semana, a temperatura subiu. ‘Podemos nadar?’, peço à minha mãe: ‘A gente leva o Jaap e o Ward’. Para o Freek é longe demais. A minha mãe dá permissão e, às dez horas, vamos andando. Carregamos juntas uma sacola grande, com sanduíches e um velho cobertor para sentar. Lena segura na mão do Ward e eu vou puxando o Jaap que tem dificuldade de acompanhar o nosso ritmo.  
   O nosso lugar favorito para nadar fica longe. Até a escola feminina são vinte minutos a pé. Lá, entramos no pasto e vamos até o fim do pôlder. O céu está azul como aço e o sol queima no nosso pescoço. Os dentes-de-leão colorem o campo de amarelo. As suas sementes pairam silenciosamente pelo ar trêmulo. Bem distante, o maçarico-de-bico-direito solta o seu grito. Cuidadosamente evitamos o esterco de vaca: ‘Cuidado, Ward!’. ‘Dê um passo grande, Jaap!’ Fazendo uma cara de nojo, o Ward olha para as moscas-varejeiras azul-esverdeadas, que comem com prazer o cocô das vacas. Quase uma hora depois de termos partido, chegamos ao nosso destino. Um pouco além do moinho destruído por um incêndio, dragas cavaram um poço profundo. A areia é usada para a construção da rodovia que liga Roterdã a Amsterdã.
   Esses tipos de poços são muito profundos. A mamãe recomendou-nos com ênfase para ficarmos perto da praia, onde a areia desce gradativamente e a água é menos fria. Estendemos o cobertor velho sobre a areia, jogamos nossas roupas no centro dele e apressamo-nos, com Jaap entre nós, até a água. Ward corre na nossa frente e deixa-se cair de bruços na água rasa. ‘A água está gostosa ou está fria?’, queremos saber. Com cuidado, experimentamos a temperatura com o dedão do pé. 
   O Jaap livra-se das nossas mãos. Ele está com calor. No seu narizinho vermelho brilham pequenas bolhas úmidas. Ele tem que ser tratado disso, mas a minha mãe tem medo de marcar uma consulta com o dermatologista, porque o Jaap é muito pequeno e delicado. Ele só pesa treze quilos, o que é muito pouco para uma criança de seis anos. A minha mãe pensa que é por causa de uma anestesia que ele precisou tomar, quando tinha um ano de idade, por causa de uma pequena operação. Ele saiu da anestesia com muita dificuldade. Depois disso, ele não queria mais crescer direito. Os seus músculos também são muito flácidos. Com facilidade coloca suas perninhas no pescoço. Ele parece um pacotinho. Às vezes, coloco-o numa sacola e ando um pouco com ele.
   Ward joga água no Jaap.
   ‘Não!’, grita ele. Ele sai da água correndo, mas o Ward o alcança e o puxa de volta para a água. Lena e eu estamos até os joelhos na água. Molhamos os nossos pulsos e, olhando uma para a outra fixamente, vamos andando mais para o fundo até que a água chega ao nosso queixo. Os olhos da Lena são mutáveis como o mar. Quando ela está calma, eles são de cor azul cinza, mas quando ameaça uma tempestade, as suas pupilas se contraem até o tamanho de cabeças de alfinete e seus olhos se colorem de cinza escura com verde. Hoje, eles são da cor azul cinza. Gotículas de água brilham como pequenos diamantes na sua pele queimada. Como uma concha branca, o seu cabelo cortado cerca a sua face pensativa.
   ‘Vamos?’, encorajamo-nos uma à outra. Respiro fundo, fecho o meu nariz e, devagarzinho, deixo-me afundar até que o silêncio da água me circunda totalmente. Em grandes borbulhas o ar escapa até o meu tórax quase estourar. Eu dou um impulso do fundo e atravesso como uma flecha a superfície da água, lançando-me ao espaço para respirar. Lena emerge ao mesmo tempo do que eu. É como se nós nos libertássemos novamente do útero materno.
   As nossas mães só têm um ano de diferença e estão grávidas ao mesmo tempo. É época de guerra, mas também um verão bonito, quando nós duas nascemos, em 1941. No colo das nossas mães nós nos conhecemos. Com passinhos inseguros, aproximamo-nos uma da outra. Trocamos beijinhos. Puxamos o cabelo uma da outra. Choramos e brincamos...
         Rindo, Lena e eu caímos nos braços uma da outra. De mãos dadas corremos para a praiazinha, passando por Ward e Jaap que constroem castelos de areia. Deixamo-nos cair no cobertor e olhamos, sonolentas, para o céu azul. (Continua)

sábado, 11 de setembro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 9

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 9
Adriana  Oliehoek

9

“Está vindo outra contração?”, pergunta uma amiga.
   “Vamos tentar de novo, senhora”, diz o médico. “Força! Vamos! Faça força! Tente! Ainda sente a contração? Dá para fazer força mais uma vez? Não? Pode deitar e descansar um pouco”.
    “Enfermeira, a senhora pode aplicar uma injeção de sintocinon na parturiente?”
   “Senhoras, procurem apoiar bem as pernas dela, pois o trabalho de parto não é fácil para a sua amiga”.
   “Já providenciou a sintocinon, enfermeira? Só uma unidade!”, ressoa a sua voz pela sala.
   “Outra contração? Vamos lá, senhora!”
   “No músculo, doutor?”, pergunta a enfermeira.
   “Sim, intramuscular.”
   “Uma picada, senhora, para estimular um pouco as contrações”.
   “É um menino, é um menino”, canta o vácuo extrator. 


1952

Vamos ter uma nova professora na escola. Ela é de Amsterdã e usa sapatos verdes.
   “Amsterdã, cidade esquisita, construída sobre estacas”, canto junto com as outras crianças da minha classe. Muito mais do que isso eu não sei de Amsterdã. Bem, eu sei que é a capital do nosso país, que Joost van den Vondel escrevia lá os seus poemas e que Rembrandt pintou lá a ‘Ronda Noturna’.
Eu sei também que os habitantes de Amsterdã são muito espertos, assim como a minha tia Pietje.
   Todos os anos ela nos visita no dia do aniversário do meu pai. Juntamente com suas duas irmãs, ela invade estrondosamente a nossa casa: “Oi querido. Como vai, irmãozinho? Vem cá para um beijo gostoso.” Ninguém está seguro. Ao mesmo tempo, ela fala para a minha mãe: “Quanto a mim, podem colocar aquele motorista de ônibus na liquidação! Meu Deus, que homem mal-humorado. Não é, meninas? Ele já deve ter esquecido como é que se ri. Certamente, ele deve estar com azia”.
   E quando todos estão tomando uma xícara de café...
   “Escutem só o que me aconteceu outro dia...”
   “Vocês lembram, quando aqueles soldados alemães estavam caçando homens para trabalharem nas fábricas da Alemanha?” “Sabem de que eles tinham medo? De doenças. Quando vi que os alemães estavam vindo em direção da minha casa, coloquei os meus filhos Wimpie e Tonnie na cama e escondi o tio Gerard embaixo da mesma cama. Os dois meninos já estavam magros, mas com um pedaço de carvão escureci a pele deles debaixo dos olhos e com farinha de trigo clareei as bochechas. Ficaram com aspecto horrível. E aqueles alemães cagaram nas calças de medo. Eles pensavam que era difteria”.
   “Ela parece uma judia”, fofocavam as minhas outras tias rindo, enquanto estavam lavando a louça na cozinha. “Se não tomar cuidado, ela vende para você o seu próprio chapéu”.
   Durante muito tempo fico pensando como alguém deve ser bobo, se ele é capaz de comprar o seu próprio chapéu. Mas, como todo mundo, adoro escutar as histórias dela. Quando ela está na metade da história – nós estamos esperando com ansiedade o desfecho – a própria tia Pietje já não se aguenta de tanto rir. Rebentando-se de riso, ela enxuga, com um lencinho branco, as lágrimas que escorrem sobre ambas as faces:
“Ai, meninas, não aguento mais. Faço xixi nas calças! Juro!”

A professora Van Selst é a professora mais querida que eu tive. Naquele ano, o meu boletim só mostra notas boas: um oito pelo meu comportamento e, imagine só, um nove por ciências naturais. A professora Van Selst gosta de flores e plantas e, depois das aulas, eu as procuro para ela nos pastos. Eu engatinho nas margens pantanosas dos riachos e, segurando-me com uma mão a uma moita de capim, estendo a outra para flores aquáticas entre as lentilhas-d’água. No dia seguinte, levo a minha colheita num vidro para a escola.
   “Oh, Jana, que bonito!” Usando novamente os sapatos verdes, ela se dirige à estante alta no canto da sala de aula. Lá, na prateleira do meio, está o livro grande com o título: “Plantas e flores silvestres”. Da janela, ela pega uma série de frascos. Jozien pode enchê-los de água na pia que fica no fundo da sala de aula. As crianças se acotovelam em torno da mesa da professora, enquanto o seu dedo desliza sobre as figuras no livro. “Será que esta florzinha amarela não é o cornichão? E essa, com pequenas flores azuis rosadas, é o ‘miosótis do pântano’. O miosótis é vulgarmente chamado de ‘não-te-esqueças-de-mim’. Mas esta flor que a Jana trouxe tem muito mais folhas do que aquelas que crescem no jardim de suas casas, por causa do lugar pantanoso em que cresce. E esta flor aqui é o malmequer-dos-brejos, também uma planta aquática...”
  
Eu adoro a história da origem da minha aldeia. Muitos anos atrás, antes de existirem os diques e os moinhos que puxam a água das partes mais baixas para o canal num nível mais alto, o local onde fica a minha aldeia era pantanoso. Uma zona ecológica que formava a passagem entre um lago mais para o sul e uma floresta escura. No outono, o vento empurrava a água do lago além das suas margens. Na primavera, porém, os caniços ondulantes com caules compridos avançavam lago adentro. Pouco a pouco, o solo se transformou em turfa e chegou um dia em que a turfa era firme o suficiente para as sementes trazidas pelo vento do leste, dando origem às turfeiras baixas. Assim surgiram os pôlderes em que os fazendeiros colocam o seu gado, em que eu brinco com meus irmãos ou onde procuro o meu refúgio, como também o meu pai fazia. Quando menino de seis anos, ele fugia às quatro horas de manhã da casa para os prados, porque não gostava de ir para a escola.
   A nossa casa pequena me sufoca e eu corro, assim como ele antigamente, pelo vasto pôlder atrás da casa, vista apenas por Deus e pelos fofoqueiros da aldeia.
   “Veja, lá vai Jana, a filha do Adriano e Cornélia”.
   “O que ela está fazendo?”
   “Ela tira os sapatos e as meias”.
   “Menina doida! Ela estende o paletó acima da cabeça”.
   “O vento o faz esvoaçar”.
   “Ela pensa que é uma ave”.
   “É bom ela tomar cuidado, senão o vento a leva”.
         Eu imito a voz das aves: ‘Qui..uít! Qui,,,uít!, grito a plenos pulmões. Por fim, sentindo-me cansada, deito-me de bruços e fico, durante longos minutos, com o rosto escondido em cheiros úmidos de terra, esterco e pasto. Repito mentalmente os nomes que a professora escreveu numa etiqueta colada nos frascos que guardam os meus colhimentos: cinosuro, pasto oloroso, rabo-de-raposa, festuca ovina e, o que não pode ser esquecido, a aveia brava com seus caules flexíveis e espigas finíssimas. Milhares de anos atrás, fazendeiros do Oriente Médio cultivaram a nossa aveia atual, a aveia sativa, a partir desta planta primitiva. (Continua...)

terça-feira, 31 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 8


Adriana  Oliehoek


8

“Força, senhora! Quando vier a contração, faça força”!
   “Isso! Pode fazer força! Quando a contração for embora, pode descansar”.
   “Olhe, sinais de movimento”, mostra o médico às minhas amigas. “Agora, a criança gira em torno do próprio eixo”.

*

Com fúria a criança golpeava o lado interno do meu abdômen. Eu estava grávida de cinco meses.
   “Não gosta quando me deito de bruços?”
   “Está faltando espaço?”
   Eu me virava. Deitada de costas, apalpava a minha barriga desnudada. A criança ondulava debaixo das minhas mãos. Ela puxava a minha barriga para a esquerda, para a direita e, por alguns instantes, mostrava um rastro de uma mãozinha ou de um pezinho.
   “Ah! Ah!, está querendo brincar de pique”.
   “Tudo bem. Peguei. Sua vez!”, e dei uma tapinha onde o sentira pela última vez. A parte inferior do meu corpo ficou assustadoramente calma, assim como o mar antes de uma tempestade. Até que, de repente, ele emergiu como a baleia branca, Moby Dick.  A minha barriga entrou em distúrbio e ele me deu alguns golpes bem no lugar onde eu dera a tapinha.
“Ai!”, eu ria alegremente.


1951

O meu cabelo loiro está armado em duas enormes tranças que vão além dos meus ombros. Ou será que eu já os tinha cortado? A minha mãe está novamente doente e a minha irmã mais velha tem que cuidar da família grande. Escovar todos os dias o meu cabelo e fazer tranças é difícil demais para a minha irmã.
   “Que pena desse cabelo bonito”, diz o cabeleireiro, olhando no espelho e balançando a cabeça em sinal de desaprovação. Durante algum momento, ele hesita como se estivesse esperando um anjo que anulasse a ordem de cortar. Mas não acontece nada e, com uma cara de arrependido, corta as minhas tranças.
   Naquele período, porém, não são apenas as minhas tranças que perco. Dois pilares em que pousava a minha confiança infantil desabam: Papai Noel não existe e crianças não nascem de um pé de repolho roxo.
   Pela última vez avanço pelo tapete, no meio do salão de eventos.  Lá está o homem, vestindo suas roupas vermelhas, que durante anos foi a esperança de algum brinquedo. Desta vez, vou prestar atenção e não vou me deixar enganar pelas aparências. Chegando mais perto, vejo a pele maquiada e a barba mal colada que esconde uma boca se movendo. É verdade o que as minhas amigas contaram: “É um homem disfarçado”! 
   A cidade iluminada com lojas enfeitadas, aonde a minha mãe me leva todos os anos e que evoca em mim tanta admiração, não é uma prova da sua existência, mas um complô de gente grande.

O Otto fez a sua Primeira Comunhão e ganhou, como presente, um livro: ‘O Pão dos Anjos’. Eu adoro ler aquele livro. Ele trata da perseguição dos primeiros cristãos. Com a respiração presa em algum canto da casa ou, à noite, na cama, eu leio sobre a sua fé inquebrantável e o seu martírio: o jovem Estêvão apedrejado; a pequena Inês exposta nua e perfurada com um estilete; o São Lourenço na grelha ardente: “podem me virar, deste lado já estou assado”.
A verdade é sagrada, mas gente grande – descubro cada vez mais – tem os seus segredos. Já não me lembro da ordem em que aconteceu. Foi primeiro o Papai Noel que sumiu do palco? Ou foi o mito das crianças recém-nascidas? 

Dinah, que senta comigo na mesma carteira escolar, já tem seios. Um dia ela me conta sem rodeios: “A Tineke vai ter um nenê”.
   “Como é que você sabe disso”?
   Quando a minha mãe com o rosto arrepiado de frio e um xale envolto no pescoço traz um repolho roxo da horta para dentro da casa, procuro prestar atenção. Na sala, o único cômodo aquecido na nossa casa inclinada, ela prepara o repolho. Eu subo meio na cadeira e meio na mesa e aproximo os meus olhos o mais possível da tábua em que ela vai cortar o repolho.
   “Cuidado! Senão você vai perder um dedo”.
   Rapidamente puxo as minhas mãos para trás. Com grande interesse, olho como a minha mãe procura com a faca grande o lugar certo na folha externa arroxeada. Com a outra mão ela faz pressão contrária. Ela inclina o corpo levemente e, devagar, a faca escorrega pelas túnicas comprimidas, das quais mais tarde acho que são parecidas com o cérebro, mas que nunca me surpreendem com um novo irmãozinho. Este sempre aparece no berço quando a gente menos espera: de manhã, ao acordar, ou depois de uma visita demorada na casa da avó ou tia.
   “Ela está com uma barriga enorme.” Com a mão, a Dinah faz um meio círculo entre os seios dela e as coxas.
   “O que isso tem a ver”?
Eu conheço bem a Tineke. Às vezes, ela ajuda a minha mãe na limpeza geral, no início da primavera. Tudo na Tineke é grande e forte: os pés, as pernas, o quadril. Cantando, ela enrola o pesado tapete de fibras de coco e o carrega sem esforço nenhum para fora, onde o joga com um único movimento sobre o batedouro. Com batidas fortes, ela descarrega a sua força sobre o tapete. Bem feito, penso, pois ele machuca os meus joelhos, quando tenho que me ajoelhar à noite diante de uma cadeira para rezar a oração da noite. Grossas nuvens de pó envolvem a Tineke e o tapete. Mas a Tineke não se importa. A sua boca larga abre-se num riso franco, mostrando os seus dentes brancos.
   Ela só tem medo de ratinhos. Em pânico, foge em cima do telhado do quarto de despejo, quando o meu irmão Dirk solta um camundongo perto de seus pés. Em seguida, com as pernas abertas e soltando um grito de pavor, salta do telhado. A sua vasta cabeleira encaracolada e ruiva esvoaça como uma coroa em torno da sua cabeça. A corrente do ar infla a sua saia e concede-me ver de relance as suas coxas brancas e fortes e uma calcinha folgada. Nessas alturas, a Tineke já não está na escola. Ela só conseguiu chegar até o quarto ano.
   À noite, estou sentada à mesa com meus seis irmãos e a minha irmã. A minha mãe pega os pratos que nós lhe estendemos e serve batatas de uma grande panela que está no meio da mesa.
   “Sabe o que a Dinah contou na escola...”, tento sobrepor a minha voz ao barulho da vozearia. A mamãe distribui alface e põe um pouco de caldo de manteiga nas batatas em cada prato.
   “Não quero alface”, diz o meu irmão Ward. Ele não gosta de verduras e puxa o prato de volta no momento em que a minha mãe quer servir a alface. “Para com isso!” Mamãe pega as folhas que caíram na mesa e as põe no prato dele. “Eu quero que você pelo menos experimente. Depois você ganha um pouco de purê de maçã”.
   “Ela diz que os bebês saem da barriga da mãe. Esquisito, né?”
   Durante alguns instantes há um silêncio, mas, logo em seguida, todo mundo volta a falar ao mesmo tempo. Eu olho para o meu prato. Eu também não gosto de alface.
   Depois da janta, a minha mãe pergunta: “Jana, você quer ajudar lavar a louça?”
   Ouço um tom elevado no timbre da sua voz. Contém uma promessa e eu concordo sem fazer objeção. Pouco tempo depois, estou com um pano de prato nas mãos sob o teto baixo do puxadinho, onde fica a cozinha. Mamãe coloca um pouquinho de detergente na bacia de lavar louça e esvazia nela uma caldeira de água quente. Uma grossa camada de espuma forma-se em cima da água. Um cheiro fresco e picante se espalha pela cozinha. Com o extensor da torneira, ela esguicha um jato de água fria, causando um buraco redondo no monte de espuma. Pega a escova e ataca a montanha de pratos e panelas sujos. Antes que o primeiro prato esteja no escorredor, ela diz: “Crianças crescem na barriga da mãe, sim”.
   Eu pego o prato e enxugo-o com movimentos pouco práticos.
   “Você poderia ter sabido. Está na oração que rezamos todos os dias. Escute só: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor esteja convosco e bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”. Ouviu? “Bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”, Jesus nasceu da barriga da Maria”.
   “Oh!” Sinto-me envergonhada. Todo esse tempo eu não soube o que eu rezava. Da barriga da mãe? Da mesma maneira como acontece com os animais?
Eu sinto o cheiro de gatinhos recém-nascidos. “Tudo bem”, tranquilizo a gatinha que se contorce na caixa de papelão. “Está vindo mais um filhote”? Estou sentada no chão frio de cimento do quartinho de despejo. Faço um afago. Ajudo a secar um filhote que pego nas mãos com cuidado. Reparo os olhinhos fechados e olho para a boquinha cor-de-rosa que parece estar à procura de algo. Seguro o bichinho contra o meu rosto e sinto o ar de vida nova. É assim que nasce uma criança? Mas a barriga é a fonte daquilo que é considerado sujo e fedido. Isso é nojento. É impossível que a santa Virgem Maria faça uma coisa dessas. Maria era casta e nasceu sem pecado original. Ela nem precisou de ser batizada como todas as outras crianças. 
   “Também na minha barriga está crescendo uma nova criancinha”. A minha mãe solta um prato na bacia e levanta-se da sua posição inclinada.
   “Repare”, diz ela enquanto dá um passinho de lado.
   Eu olho para a parte de frente do seu corpo, coberto por um avental preto com flores amarelas e vermelhas que está esticado em torno do seu abdômen volumoso. 
   “Reze para que seja uma irmãzinha! Você já tem muitos irmãos”. Ela volta-se para a pia e pega o prato que deixara na bacia. Dois meses depois, nasce o meu irmãozinho Freek. (Continua...)