sexta-feira, 9 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A morte do Tiago

Coloco o seu retrato pintado em cima da estante, feita de madeira de carvalho e com vitrais nas portinhas. Depois da mudança, não o pendurei mais. Reencontrei-o na gaveta debaixo da minha cama. Uma fina camada de poeira cinzenta cobre as ocras amarelas e marrons, o ciano queimado, as leves pinceladas de carmim. Apenas o seu blusão tem a cor de terra esverdeada.
Sopro levemente sobre a superfície. Meus lábios tocam, de leve, o seu queixo com o buraquinho característico da família, suas faces, a sua testa estreita e, por fim, a sua boca. Em seguida, eu espero. Será que ainda espero um milagre?

Meu irmão, Tiago, acidentou-se, fatalmente, no dia em que os sinos tocavam anunciando o enterro de um conterrâneo de vinte anos. Este rapaz, na sua intrepidez juvenil, despedaçou-se, literalmente, com o seu carro contra um poste. “Não há como vesti-lo para os funerais”, o agente funerário comunicou aos pais chocados. O caixão ficou fechado. A aldeia inteira estava de luto e o Tiago, em nome da associação juvenil, fora à floricultura onde encomendara uma coroa de flores. Ele escolheu uma coroa preta com copos-de-leite.

Na primavera de 1971, eu morava e trabalhava em Utrecht, onde seguia também um curso noturno. Três noites por semana, eu pegava a minha pasta de livros e enriquecia-me de conhecimentos que não tive oportunidade de colher na minha juventude.
Foi numa noite de uma quarta-feira, durante a aula de ciências naturais, que o zelador entrou hesitante na sala de aula. Ele disse algumas palavras ao ouvido do professor, que estava em ponto de explicar-nos a refração da luz através de um prisma. A mão do professor, segurando um pedacinho de giz, parou a cima da sua cabeça, quando ele se virou e disse: ‘Senhora Adriana, tem telefone para a senhora’.
Com o olhar fixado no pedacinho de giz acima da sua cabeça, as palavras dele rodavam na minha cabeça: tem telefone para a senhora? Telefone? Para a senhora?
Não fiz nenhuma menção de deixar o meu lugar. ‘Não pode ser’, respondi.
‘É verdade, sim. Tem telefone para a senhora’.
Eu me perguntava se ele sabia que o braço dele ainda estava levantado? Que o giz estava entre os seus dedos como um cigarro apagado?
‘Quem é que vai querer falar comigo aqui na escola?’
‘É melhor a senhora ir.’
Talvez eu devesse dizer: professor, o seu giz...
‘Deve ser um engano. Não pode ser. Ninguém vai ligar para mim aqui.’
‘Mas é verdade. A senhora pode atender no corredor.’
A mão que segurava o giz desceu. Finalmente.
‘Pode ir. O zelador vai mostrar onde está o telefone.’
Segui o zelador para o corredor, onde, num cantinho, o auscultador estava esperando por mim sobre uma prancheta debaixo do telefone.
‘Sim, alô. Quem fala?’
‘Sou eu, Adriana’, respondeu o meu irmão Pedro. ‘Você tem que vir para casa!’
‘Ir para casa? Estou no meio da aula de ciências.’ Como é que ele podia ligar para me dizer que tinha que ir para casa. Eu não podia faltar àquelas aulas, de jeito nenhum!
‘Você tem que vir, Adriana. O Tiago sofreu um acidente.’
O Tiago, um dos meus irmãos mais novos, tinha tido um acidente? O Tiago que, de antemão, perdia qualquer batalha de concorrência que tentasse com o irmão logo acima dele, o Adriano. Aquele que queria fazer as pazes, quando os seus irmãos menores, Francisco e Léo, brigavam, mas que, inevitavelmente, apanhava porque os dois, em seguida, se voltavam como um só homem contra ele. Aquele que aprendeu a tocar violão sozinho; que como baixista num conjunto vagou durante dois anos ao longo da Riviera italiana e francesa e vivia... Vivia de quê? Os bolsos dele sempre estavam vazios. Com regularidade, a minha mãe colocava um dinheirinho no bolso dele: ‘filho, cuide melhor do seu dinheiro.’
‘Você estraga este menino! Eu não dou mais nada!’, dizia meu pai.
‘Não se preocupe, mãe. Tudo vai dar certo’, respondia o Tiago sempre.
Ele tinha 23 anos.
‘Puxa, não é grave, não é?’
‘Sim, é muito grave.’
‘Mas... está morto?
‘Está, Adriana, ele está morto.’
‘Não, não pode ser!’
‘Infelizmente, é a verdade, Adriana.’

Sentia-me atravessada por uma faca afiadíssima que entalhava no meu esterno, atingia o meu diafragma. Meu estômago virava como uma pedra pontiaguda na minha barriga. Balançando para lá e para cá como um navio nas ondas de um mar bravo, eu tentava manter-me em pé. Mantenha-se firme, não caia. Você tem que ir para casa, para o Tiago!

Utrecht – Stompwijk. Uma distância de 80 quilômetros. Em alta velocidade, um colega da escola levou-me no seu carro para casa. Ele ofereceu-se espontaneamente. No escuro, na auto-estrada, eu tentava criar uma imagem do acontecido. Tiago estava morto. Como foi? Quem foi? Onde? Era mesmo um acidente? Solitário e melancólico, ele costumava olhar de um modo tão pensativo. Será que ele...? O Tiago não era feliz com a vida burguesa que levava depois que voltou do exterior. Só mesmo, nos fins da semana, quando tinha oportunidade de tocar num conjunto, ele revivescia um pouco.
Na casa paterna, encontrei os meus irmãos, a minha irmã e outros parentes com os olhos vermelhos e intumescidos, esperando meus pais.

Os meus pais estavam na sala de espera do hospital, aonde fora levado o Tiago, segurando firmemente um ao outro, sentados num banco de madeira. Quantas horas haviam passado? Uma? Duas?
Finalmente, um médico andou em direção deles: ‘Os pais do Tiago?’
‘Sim’, como se fossem uma só pessoa, levantaram-se.
‘Infelizmente, não pudemos fazer nada por seu filho’.
Não puderam fazer nada? Por que esperaram, então, tanto tempo. Sem poderem entender a extensão dessas palavras, acompanharam o médico, andando por corredores sem fim, que se tornavam cada vez mais cinzentos e frios. Chegando ao mortuário, o médico puxou o lençol para trás que estava esticado sobre o corpo sem vida de um rapaz: ‘É este o seu filho?’ ‘É o Tiago’, diziam ao mesmo tempo.

Quantas vezes, na minha imaginação, eu acompanhei mais tarde o meu irmão na sua última viagem, no seu carrinho recentemente comprado? Quantas vezes, na minha imaginação, sentei ao lado dele, quando ele saiu pela última vez do seu trabalho?
O seu rosto surge na minha memória, destacando-se a mecha branca de cabelo na testa, contrastando com o resto do seu cabelo loiro escuro: um pedacinho de pele sem pigmentação com que ele nascera. ‘Quando papai e mamãe fizeram você, faltou tinta’, costumávamos caçoar dele.
Vejo suas mãos delgadas, puxando o volante ora para a direita ora para a esquerda, direcionando o carro sobre a estrada provincial que passava pela aldeia.
Faz quase um ano que ele tirou a carta de habilitação. Orgulhoso e contente de poder significar algo para alguém, ele atende a todos os pedidos de carona.
‘Tiago, eu perdi o ônibus. Será que você me pode levar até em casa?’
‘Tiago, a gente gostaria de fazer uma visita à tia Ana. Será que você pode buscar a gente hoje à noite?’
‘Tiago, eu tenho tanta bagagem. É demais para ir de ônibus. Será que você pode levar-me para casa?’
‘Tiago, o tempo está tão ruim, será que você pode levar a gente até a igreja?’
A cada pedido, os seus olhos castanhos brilhavam. O carro fez com que o seu lugar na hierarquia dentro da casa subisse consideravelmente.

O trânsito na outra pista vem ao nosso encontro em pequenos comboios de três ou quatro carros. Alguns quilômetros mais adiante, há gente trabalhando na pista. Estamos chegando à nossa aldeia. Já dá para a avistar o armazém que, por causa da sua localização na curva, nos tira a visão da estrada. Já me regozijo da visão que vai descortinar-se depois da curva, a paisagem da minha infância: fazendas a ambos os lados da estrada e do rio que, colados um no outro, atravessam toda a aldeia; pontes levadiças; o rio onde pescávamos no verão e patinávamos no inverno, depois de cinco noites de geadas; os pastos com vacas, ovelhas e cordeirinhos; a casa inclinada, onde o Tiago, como único da família, havia nascido.
A casa velha já não existe mais. Ela estava afundada por demais. Era muito úmida e já não oferecia nenhum conforto. Pai e mãe, com os filhos que ainda moravam em casa, mudaram para uma casa nova, no núcleo da aldeia; uma casa de esquina, com um jardim imenso de lado e atrás. Uma casa grande e seca, sem umidade e sem tábuas de madeira no sótão que rangem ao sair da cama.
Falta pouco para chegarmos. Tiago conduz o carrinho pequeno na curva. Na pista da esquerda aproximam-se dois caminhões e...
‘Cuidado, Tiago, cuidado! Aquele doido vai ultrapassar os caminhões na curva. Freie, Tiago, ele está na sua pista. Pise no breque, ele vem em cima da gente!’

Chegando neste ponto, na minha imaginação, saio do carro dele. Só o meu irmão, Tiago, sofre o acidente. As marcas da brecada na curva mostram onde as rodas do seu minicarro deslizam na berma da estrada; onde Tiago luta pela vida; onde ele tenta fazer voltar o carro para o asfalto; onde o pé escorrega do pedal de freio e ele perde o controle sobre o carro que, desgovernado, volta para o asfalto e choca com o veículo na contramão.
Tento sentir a pancada da cabeça dele contra o pára-brisa. Vejo a mecha branca que se avermelha pouco a pouco. Durante longos minutos continuo na cama, com a respiração contida.

Na mesma semana, no sábado, o Tiago foi enterrado. Um dia antes, a justiça liberara o corpo, que foi levado para a igreja, onde costuma ser o velório. Como vítima de um delito de trânsito do qual o autor prosseguira o seu caminho, o caixão dele foi lacrado. Alternadamente, olhávamos para o Tiago através da janelinha na tampa do caixão. O enfermeiro no hospital estava com razão: ‘o acidente deixou poucas marcas’. Em casa reinava uma atmosfera quase alegre. O médico havia prescrito um grande vidro de tranqüilizantes de que todos nós lambiscávamos com certo prazer. Minha mãe chorava e ria ao mesmo tempo ao dizer: ‘agora ele tem que ficar na igreja até amanhã e antes não ia nem a pau.’
Sábado. Jovens tocam música pop na igreja. A guitarra vermelha do Tiago está no meio deles, mas ninguém a toca. Toda a comunidade canta ‘Blowing in the Wind’ enquanto carregamos, depois da Missa, o caixão para o cemitério. Ele é colocado na mesma cova onde, três dias antes, o rapaz de vinte anos fora enterrado.
No dia seguinte, volto ao cemitério. A cova está fechada. Os buquês do rapaz e do Tiago cobrem, numa composição íntima, a terra recentemente removida. No meio brilha a coroa preta com copos-de-leite.

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