sexta-feira, 16 de março de 2012

Contos de Adriana Oliehoek


A Fonte da Donzela

Com a mochila ainda nas costas e o trinco da porta na minha mão, uma voz rouca soa: ‘Faz tempo que chegaste?’. Viro-me em direção do som. Com uma perna dentro e a outra no último degrau da escadinha, uma senhora gorda está prestes a entrar num trailer vizinho.
‘Ah, não’, gemo baixinho. Não queria esta imagem no meu cenário. Já tive que modificar os meus planos uma vez. O Rodrigo não quis vir comigo e eu contara tanto com a sua presença para fugir daquela cidade barulhenta e poluída, voltando para a natureza. Ontem à noite, a mochila já estava pronta, o telefone tocou: não tinha tempo, estava frio e escuro demais, foi a desculpa. A cama rangia durante a noite, a roupa de cama gemia, a minha cabeça latejava: não se faça de tolo, um rapaz dez anos mais novo do que eu!
A vida não é justa. Sou boazinha demais. Estou sempre pronta para ajudar, para dar-me em amor. Dar, dar... dar até sentir-me totalmente vazia. Estava cheia de ver gente e fugi para um camping onde uma amiga  me emprestara o seu trailer. O dia já está findando quando, finalmente, chego ao local. Na luz pálida do sol do outono, a mulher espera uma resposta. Eu me pergunto se devo negá-la sem mais nem menos. Virar as costas para ela e entrar? Mas, se ela estranhar a minha conduta? Quem sabe, ela fica com raiva e estou sozinha aqui. ‘Não, estou chegando agora’, respondo à sua pergunta.
'Queres beber alguma coisa?’
Meia hora depois, estou tomando café no ‘treile’ da Maria. Outro campista, com uma barba de alguns dias e olhos cavados, entra furtivamente no trailer. Antônio conta que está aposentado e que sente falta das mulheres desde que ele se divorciou faz cinco anos. Esta noite, Antônio e Maria vão ver televisão juntos e, se eu não tiver nada que fazer, sou muito bem-vinda. Maria usa o pronome ‘tu’ para todo mundo. De vez em quando, porém, ela diz ‘a senhora’.
À noite, já estou deitada, alguém bate na porta: é Antônio. Se quero ver TV? Eu recuso. O meu corpo está tenso e reage a cada som que ocorre na vizinhança do trailer.
No dia seguinte, acordo com um solzinho agradável entrando no meu quarto. Aumento o aquecedor e ligo o rádio. Em seguida, volto para a cama. À espera do calor, escuto no rádio um programa para mulheres. Visto-me e, enquanto preparo o café, vejo que alguém mexe com o trinco da porta. A voz da Maria: ‘queres uma xícara de café?’
'Quero, sim, mas ainda não tomei o café da manhã.'
'Puxa, como tu acordas tarde,' ela observa. Dou-lhe razão e comunico que primeiro quero tomar o meu café da manhã, o café que eu mesma fiz e que, depois, vou fazer uma caminhada. Maria murmura que é melhor ir de bicicleta, pois ‘assim tu vês muito mais’.
'Não, quero ir a pé’, respondo decididamente.
Olhando disfarçadamente para todos os lados, saio às onze e meia do trailer. Graças a Deus, nenhum sinal de Antônio ou Maria. Eles me fazem lembrar as figuras sinistras de um filme de Ingmar Bergman: A Fonte da Donzela. Figuras reptilóides, astutas, malvadas, que, como num reflexo, satisfazem às suas necessidades. Saio do camping, atravesso a estrada e sigo uma trilha ao longo de extensas criações de gansos. O céu de um azul rarefeito distende-se silenciosamente sobre a paisagem outonal. Encho os pulmões de ar, prenhe de odores da terra, folhas apodrecidas, musgo e cogumelos. Atrás das cercas, gansos novinhos afastam-se grasnando com movimentos cambaleantes. Sinto vontade de chorar, com saudades do meu pai. O vento limpa as lágrimas do meu rosto. Sigo a diretriz cegamente. O objetivo é andar, cheirar, sentir. Procurar a Adriana e meu pai dentro de mim.
Uma menina pequena fugindo da maldade do mundo. Um dia, fugi do acampamento das Bandeirantes após uma briga com a chefe. Horas em seguida andei pela areia solta das dunas ao longo duma cerca que era a minha guia, assim como as pedrinhas eram a diretriz do Pequeno Polegar. O ser humano só é valorizado quando já não está mais presente. Agora não há nenhuma chefe zangada e preocupada que me leva de volta enquanto durmo. Meu pai é um lugar silencioso, a minha mãe ocupada com a renovação da sua casa. Será que isso é tornar-se adulto: aceitar que ninguém vai sentir falta da gente?
Num toque de mágica o sol doura as folhas no chão. As árvores que dirigem a trilha pelo bosque parecem ter crescido eretas para o céu. Elas murmuram num frêmito refrescante. Será que elas me vigiam? Assustada olho em meu redor: A Fonte da Donzela! Vestida inocentemente com uma blusa de lã pura, de calça jeans e botas de couro, caminho na plena luz do sol. Uma prenda fácil para a maldade escondida na escuridão do bosque. Não quero pensar, não quero saber nada nem do bem nem do mal. Quero ser inocente como uma criança. Um pouco mais adiante, um homem anda ociosamente. É um militar. Como quem não quer nada com nada, apanho um pau do chão. O seguro com força e sinto a minha força passar para o cacete: a minha força que o homem vai sentir se pensar em fazer algo comigo. Um filete de suor escorre por entre as minhas omoplatas, enquanto saúdo timidamente o homem ao passar por ele. Lá, bem mais adiante, um veículo militar ocupa o espaço da trilha pelo bosque. De repente, vejo militares por todos os lados. Os meus braços se relaxam. O pau balança meio sem graça ao lado da minha bota.
'Tempo bonito,' diz o militar.
‘É, sim, gostoso', respondo.
'Está de férias?’, soa a sua voz amigavelmente.
'Estou, tirei uns dias livres. Vocês estão fazendo exercícios?’
'Estamos preparando um exercício, colocando avisos e outras coisas’, ele explica.
Voltando pelo caminho com as criações de gansos, o pau desenha riscos na areia, bate de leve na minha bota, sussurra pelo ar: mas fica em minhas mãos.


Um comentário:

  1. Heb ik zelf ook nog niet op mijn blog staan. Vandaag begonnen met Het bezoek te plaatsen! Dank je zus!

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