A Fonte da Donzela
Com a mochila ainda nas costas e
o trinco da porta na minha mão, uma voz rouca soa: ‘Faz tempo que chegaste?’. Viro-me em direção do
som. Com uma perna dentro e a outra no último
degrau da escadinha, uma senhora gorda está prestes a entrar num trailer
vizinho.
‘Ah, não’, gemo baixinho. Não
queria esta imagem no meu cenário. Já tive que modificar os meus planos uma vez.
O Rodrigo não quis vir comigo e eu contara tanto com a sua presença para fugir
daquela cidade barulhenta e poluída, voltando para a natureza. Ontem à noite, a
mochila já estava pronta, o telefone tocou: não tinha tempo, estava frio e
escuro demais, foi a desculpa. A cama rangia durante a noite, a roupa de cama
gemia, a minha cabeça latejava: não se faça de tolo, um rapaz dez anos mais
novo do que eu!
A vida não é justa. Sou boazinha
demais. Estou sempre pronta para ajudar, para dar-me em amor. Dar, dar... dar
até sentir-me totalmente vazia. Estava cheia de ver gente e fugi para um
camping onde uma amiga me emprestara o seu trailer. O dia já está
findando quando, finalmente, chego ao local. Na luz pálida do sol do outono, a
mulher espera uma resposta. Eu me pergunto se devo negá-la sem mais nem menos.
Virar as costas para ela e entrar? Mas, se ela estranhar a minha conduta? Quem
sabe, ela fica com raiva e estou sozinha aqui. ‘Não, estou chegando agora’,
respondo à sua pergunta.
'Queres beber alguma coisa?’
Meia hora depois, estou tomando
café no ‘treile’ da Maria. Outro campista, com uma barba de alguns dias e olhos
cavados, entra furtivamente no trailer. Antônio conta que está aposentado e que
sente falta das mulheres desde que ele se divorciou faz cinco anos. Esta noite,
Antônio e Maria vão ver televisão juntos e, se eu não tiver nada que fazer, sou
muito bem-vinda. Maria usa o pronome ‘tu’ para todo mundo. De
vez em quando, porém, ela diz ‘a senhora’.
À noite, já estou deitada, alguém
bate na porta: é Antônio. Se quero ver TV? Eu recuso. O meu corpo está tenso e reage a cada som que ocorre na
vizinhança do trailer.
No dia seguinte, acordo com um
solzinho agradável entrando no meu quarto. Aumento o aquecedor e ligo o rádio.
Em seguida, volto para a cama. À espera do calor, escuto no rádio um programa
para mulheres. Visto-me e, enquanto preparo o café, vejo que alguém mexe com o
trinco da porta. A voz da Maria: ‘queres uma xícara de café?’
'Quero, sim, mas ainda não tomei
o café da manhã.'
'Puxa,
como tu acordas tarde,' ela observa. Dou-lhe
razão e comunico que primeiro quero tomar o meu café da manhã, o café que eu
mesma fiz e que, depois, vou fazer uma caminhada. Maria murmura que é melhor ir
de bicicleta, pois ‘assim tu vês muito mais’.
'Não, quero ir a pé’, respondo
decididamente.
Olhando disfarçadamente para
todos os lados, saio às onze e meia do trailer. Graças a Deus, nenhum sinal de Antônio
ou Maria. Eles me fazem lembrar as figuras sinistras de um filme de Ingmar
Bergman: A Fonte da Donzela. Figuras reptilóides, astutas, malvadas, que, como
num reflexo, satisfazem às suas necessidades. Saio do camping, atravesso a
estrada e sigo uma trilha ao longo de extensas criações de gansos. O céu de um
azul rarefeito distende-se silenciosamente sobre a paisagem outonal. Encho os
pulmões de ar, prenhe de odores da terra, folhas apodrecidas, musgo e
cogumelos. Atrás das cercas, gansos novinhos afastam-se grasnando com
movimentos cambaleantes. Sinto vontade de chorar, com saudades do meu pai. O vento limpa as lágrimas
do meu rosto. Sigo a diretriz cegamente. O objetivo é andar, cheirar, sentir. Procurar a Adriana e meu pai dentro de mim.
Uma menina pequena fugindo da
maldade do mundo. Um dia, fugi do acampamento das Bandeirantes após uma briga
com a chefe. Horas em seguida andei pela areia solta das dunas ao longo duma
cerca que era a minha guia, assim como as pedrinhas eram a diretriz do Pequeno
Polegar. O ser humano só é valorizado quando já não está mais presente. Agora
não há nenhuma chefe zangada e preocupada que me leva de volta enquanto durmo. Meu
pai é um lugar silencioso, a minha mãe ocupada com a renovação da sua casa.
Será que isso é tornar-se adulto: aceitar que ninguém vai sentir falta da gente?
Num toque de mágica o sol doura
as folhas no chão. As árvores que dirigem a trilha pelo bosque parecem ter
crescido eretas para o céu. Elas murmuram num frêmito refrescante. Será que
elas me vigiam? Assustada olho em meu redor: A Fonte da Donzela! Vestida
inocentemente com uma blusa de lã pura, de calça jeans e botas de couro,
caminho na plena luz do sol. Uma prenda fácil para a maldade escondida na
escuridão do bosque. Não quero pensar, não quero saber nada nem do bem nem do
mal. Quero ser inocente como uma criança. Um pouco mais adiante, um homem anda
ociosamente. É um militar. Como quem não quer nada com nada, apanho um pau do chão. O
seguro com força e sinto a minha força passar para o cacete: a minha força que o
homem vai sentir se pensar em fazer algo comigo. Um filete de suor escorre por
entre as minhas omoplatas, enquanto saúdo timidamente o homem ao passar por ele.
Lá, bem mais adiante, um veículo militar ocupa o espaço da trilha pelo bosque.
De repente, vejo militares por todos os lados. Os meus braços se relaxam. O pau balança meio sem graça ao lado da minha bota.
'Tempo bonito,' diz o militar.
‘É, sim, gostoso', respondo.
'Está de férias?’, soa a sua voz
amigavelmente.
'Estou, tirei uns dias livres. Vocês
estão fazendo exercícios?’
'Estamos preparando um exercício,
colocando avisos e outras coisas’, ele explica.
Voltando pelo caminho com as
criações de gansos, o pau desenha riscos na areia, bate de leve na minha bota,
sussurra pelo ar: mas fica em minhas mãos.
Heb ik zelf ook nog niet op mijn blog staan. Vandaag begonnen met Het bezoek te plaatsen! Dank je zus!
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