quinta-feira, 5 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 4

 Adriana Oliehoek


4

Duas fitas largas estão atadas na minha barriga. Um aparelho ao lado da cama conta as pulsações do bebê e mede a força das contrações.        “Contrações fortes”, diz a enfermeira.
    Parecem cólicas menstruais, acho eu.
   O ginecologista de plantão vem dar uma olhada. Ele põe um par de luvas finas. Os seus dedos indicador e médio apontam como um revólver para frente: “Senhora, vamos fazer um toque”. Ele separa as minhas pernas e, pressionando suavemente, constata que ainda não se pode falar de dilatação, enquanto quase compartilha comigo a cama. Mas o colo do útero está se preparando.
   “Ainda está no começo? Bem, então vou voltar para casa. Vamos, gente!” Preparo-me para levantar.
   “Não, senhora, isso não é prudente!” O médico tira as luvas levemente ensanguentadas. “Levando em consideração a sua idade e a presença de um grande mioma, é melhor ficar. Vou dar um sonífero para a senhora dormir um pouco. As senhoras acompanhantes podem ir para casa. Ligaremos para elas quando estiver na hora”.
   “Não, senhor, nós vamos ficar!”, dizem elas.
   “E eu não fico sozinha aqui!”
   “Mas ela deve descansar, ela deve estar bem descansada, quando o parto começar de fato”, persiste o médico.        


1949

Estou de volta em casa. Cheia de orgulho mostro as blusas que a tia Door e Nellie tricotearam para mim. Uma é vermelha com verde e a outra cinza com vermelho. Nos meus braços, carrego um boneco de pano com uma cabeça dura. O crânio é tão calvo como o do meu pai, que eu admiro muito. O nome do meu boneco é Kala.
  
Enquanto subo a escada para o sótão, canto na melodia da canção “Lili Marleen”:
   “Kala, Kala, Kala, vamos subir?
   É a nossa cama que a gente vai curtir.”
  
   Giro a maçaneta de madeira da porta que separa a parte feminina do sótão do lado dos meninos. Na cama, com a cabeceira encostada contra o telhado inclinado, dormimos eu, a minha irmã e Kala. Às vezes, às escondidas, levo também a gata. Quando a minha irmã, uma hora depois, vai deitar-se, ela grita: “Mãe, ela levou a gata para a cama”. Dá um chute e o pobre bicho voa para fora da cama. Com as costas arcadas e o rabo em pé a gata procura a saída.
   Esta noite, não levei a gata; só o meu boneco. O sol está baixo e desenha uma história de folhas e galhos pretos no papel de parede da divisória. Tiro as minhas roupas, visto a camisola e, com um movimento rápido, solto as tranças pesadas. Sacudo a cabeça e os meus cabelos espalham-se num leque amplo. Como isso é gostoso! A minha cabeça parece um carrossel e a tensão no meu pescoço desaparece.
Antes de deitar-me, fico sentada durante algum tempo, com os joelhos dobrados e os braços em torno das pernas e, enquanto o meu queixo descansa na fortaleza que assim construí para mim mesma, os meus olhos seguem os movimentos bizarros na parede.
“O que vamos fazer esta noite, Kala? Vamos viajar?” Eu consigo imaginar a mim mesma viajando para qualquer lugar. Leis terrestres, como a da gravidade, eu supero deixando o meu corpo na cama. Imaterializada, juntamente com o meu boneco, viajo pelo mundo inteiro. Certa noite, fizemos uma visita ao Grand Canyon, no faroeste dos Estados Unidos. Certa vez vi uma estampa dele na casa do meu avô e ele me contou a respeito.
“Olha”, explico a Kala: “Muitos anos atrás, ainda antes que os índios moravam aqui, isso era um mar”. Segurando-a no meu colo, estou sentada na plataforma norte do Grand Canyon e observo o desfiladeiro imenso. Atrás de mim, o sol vai ganhando o céu americano e colore os rochedos no outro lado do desfiladeiro de vermelho. Estendendo-se sobre muitas milhas, altos picos de montanhas irrompem a cobertura de nuvens. “Ali ficam os Prados Eternos”, mostro com o dedo, “lá correm Pena Branca e Olho de Águia nos seus cavalos velozes como o vento. Eles caçam búfalos. Quando você morrer, Kala, você vai para lá. Uma carruagem preta puxada por dois cavalos levará você para lá. Eu mesma vi. Os músculos dos cavalos se retesam e, devagar, a carruagem põe-se em movimento. Matraqueando, os raios de madeira giram em torno dos eixos das rodas até a carruagem desaparecer de vista”.
   Transformo as minhas mãos num binóculo e olho fixamente nos flocos infinitos de névoa, mas não consigo ver, em lugar nenhum, a minha irmãzinha natimorta e os meus irmãozinhos falecidos. Vejo grandes aves de rapina pairando a meio caminho dos rochedos do desfiladeiro. Talvez sejam águias, urubus ou falcões. Elas estão à procura de refeições apetitosas no fundo do precipício. As suas sombras pretas deslizam sobre as copas das árvores, sobre os pastos e sobre a cintilação do rio.
Cortando os ares noturnos com Kala, colho edelvaises nas montanhas suíças e balanço na corda bamba no Circo du Soleil, no Canadá. Não preciso de bagagem, dinheiro e meios de transporte modernos. É verdade que sou pequena e tenra, mas no meu modo de pensar sou todo-poderosa. Mas tudo tem o seu preço. Certa noite, quando estou sozinha na cama com a minha boneca, a pergunta atinge o meu cérebro como um relâmpago: “Eu existo de verdade ou eu apenas penso que existo?”
   Só anos mais tarde, eu aprendo na faculdade que para Descartes era suficiente perceber que ele pensava e que, por isso mesmo, existia. Mas agora sou pequena ainda e, com medo, conto os botões da minha camisola: “Existo sim, existo não, sim, não...” Sinto um suor frio. Preciso de certeza. Cuidadosamente, assim como Noé soltava a pomba para procurar terra seca, as minhas mãos vão à procura de mim mesma. Cautelosamente, elas apalpam o meu corpo, escorregam por minhas coxas, sentem a covinha quente na minha barriga, a caixa torácica e, finalmente, escondida numa vasta cabeleira, a minha cabeça. Graças a Deus, ela não está solta no travesseiro, mas está ligada ao resto. Solto um suspiro profundo: quando a gente se sente a si mesma, então não é verdade que a gente existe? Não quero pensar sobre a questão se eu talvez apenas pense que estou sentindo a mim mesma. Em seguida, escondo-me no meu sono.
         No dia seguinte, saio sorrateiramente da cama onde a minha irmã continua dormindo. Nos dedos dos pés, esgueiro-me pela porta que dá acesso ao sótão dos meninos e deito-me na cama com os meus irmãos. Não na cama perto da porta, onde dorme o meu irmão mais velho. Senão ele vai fazer de novo aquilo. Outro dia eu me enfiara debaixo dos cobertores, aconchegando-me pertinho dele, e ele fizera cafuné nas minhas costas. Mas de repente senti o pênis dele, procurando um caminho pela cava da minha calcinha. Estava duro e quente, fazendo pressão nas minhas nádegas. Permaneci imóvel e não tinha coragem de dizer: “Não faça isso! Isso é proibido!” Pois, em outras circunstâncias, ele sempre foi muito bom para mim. Mais tarde, contei o acontecido à minha mãe. Mas me arrependi de ter falado. Ela olhou muito feio para ele e o meu irmão, com rosto vermelho, lançou um olhar bravo para mim.
(Continua...)

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