quarta-feira, 11 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 5


Adriana  Oliehoek
5

Chegamos à conclusão que seria melhor as amigas irem comer algo num restaurante perto do hospital e eu prometo tirar uma soneca.
  
Vejo a mim mesma numa praia deserta, junto à linha da água do mar. As ondas avançam com grandes cristas brancas em minha direção. Chegando perto de mim, fazem uma reverência com grande estrondo e retiram-se, sussurrando baixinho.  Junto aos meus pés, ficou um pacotinho comprido. É uma rosa de um vermelho profundo, embrulhada em papel celofane.  Apanho a rosa e, surpresa, a seguro contra o meu peito. O mar me deu uma rosa.
 O mar é o meu amor, o meu amante. Ele me chama com sons altos, baixos e persuasivos, quando me deito de costas na areia. O mar me vem buscar. Investe sobre mim com ondas agitadas. Rodeia-me acariciando-me suavemente e, marulhando, penetra dentro de mim...


1950

Limpeza é o nosso bem supremo. No sábado, todas as crianças são banhadas, uma após outra, numa grande tina com água quente. Na noite anterior, o papai já colocara no chão, num canto da cozinha, o fogareiro de querosene com cinco pavios de oito centímetros de largura. Por cima dele, coloca um suporte de ferro fundido, capaz de aguentar bastante peso. Em seguida, enche o caldeirão até a metade com água fria. Pega nas alças e retesa os músculos. Rugas grossas surgem no seu pescoço. Com os dentes cerrados, pé ante pé, carrega o caldeirão até o fogareiro e solta um grito ao colocar o caldeirão pesado sobre o suporte. Com ajuda de uma caçarola, acaba de encher o caldeirão com água.
   Sábado é também o dia em que posso sentar um pouco no colo da minha mãe. Com minhas pernas presas entre as pernas dela, ela corta as unhas dos meus dedos e limpa os meus ouvidos com um palito de fósforo enrolado num tufo de algodão.

A minha mãe é católica rigorosa. Todos os dias, antes de irmos para a escola, temos que ir à igreja. No domingo, ir à igreja é uma obrigação sob pena de pecado mortal. A alma fica preta e se alguém assim se apresentar na porta do céu será mandado diretamente para o inferno e terá que queimar eternamente no fogo. O meu pai é menos rígido: “É melhor não pensar muito nessas coisas”, diz ele para mim, “senão você fica louca”.
   Acho que o meu pai está com razão, pois, na escola, a irmã Brigita fica com muita raiva durante a aula de religião. Ela fica no meio da sala de aula e conta sobre o mistério da Santíssima Trindade: “Um Deus e, mesmo assim, três pessoas: o pai, o filho e o espírito santo. Ninguém consegue entender isso; nem o santo e sábio Agostinho conseguiu desvendar esse mistério”.
   Eu, porém, não acho difícil e penso no exemplo que o padre deu numa aula de catecismo com três fósforos acesos que juntos têm uma só chama. Levanto a mão: ‘Eu entendo’.
A irmã Brigita bate furiosamente com o punho na sua mesinha e grita: “Ninguém, ninguém é capaz de entender isso e logo você acha que pode entender!” Eu levo um susto e penso que talvez seja melhor não entender. Não gosto mesmo da escola. Nem sei por que tenho que ir. Já sei ler e quando for grande vou ser mãe.
O melhor da escola é quando o sino toca às três e meia, para avisar o fim das aulas. Principalmente no verão. Aí, eu corro para casa. Tiro os meus sapatos e as meias e, descalça, corro pelo pasto que se estende atrás da horta. Quando estou bem longe de casa, deito-me de costas e tiro do bolso do casaco os pedacinhos de vidro que achei no caminho para casa. Eu adoro vidro, principalmente quando é colorido. Durante minutos fico olhando através de um pedacinho. Quando o vidro é vermelho, o mundo inteiro torna-se vermelho; menos o que é vermelho, pois isso se torna preto. Não é gozado? Quando o vidro é azul, tudo em torno de mim fica azul. Eu viro o vidro em todas as direções, deixando a luz passar dos diversos cantos. Com vidro consigo fazer um pouco de mágica. Com o fundo de uma garrafa consigo até fazer fogo sem usar fósforos. Mas, não gosto muito disso. Os meus irmãos sim. Com o foco da luz eles queimam as mãos uns dos outros, para ver quem é que aguenta mais tempo. O que eu acho mais sensacional do vidro é que você pode olhar através dele. Maravilhoso! Principalmente, porque vidro na verdade é areia, mas quando eu ando na praia não posso olhar para o outro lado do mundo.
As minhas pálpebras se tornam cansadas e pesadas.
'Abracadabra', agito um pedacinho de vidro pelo ar, 'eu transformo tudo em vidro'.
Agora não existem mais mistérios. Tudo é transparente: a igreja, o convento e as casas. Num mundo de vidro, as pessoas não usam roupas. Elas vivem nuas. Sinto que fico um pouco excitada e com sentimentos de culpa. Como se fosse algo errado, olhar para a nudez dos outros. Não entendo bem por quê. A mesma coisa eu senti quando estava olhando pela fresta do sótão para a minha mãe.
   Em algum lugar, em uma das casas de vidro, mora o meu amiguinho Simon. Ele está brincando sozinho, no seu quarto, com um trenzinho de vidro. Quando ele me vê, ele se levanta apressadamente. Acena para mim e faz um gesto com a mão para eu me aproximar: “Vem brincar comigo?”
Tiro as roupas e sinto uma leve tontura ao ver a minha pele branca e vulnerável. Segue uma forte excitação. Livre como um pássaro a voar abro os braços no ar. Giro algumas vezes em torno do meu próprio eixo. O vento acaricia a minha pele, faz cócegas nas minhas axilas e entre as minhas pernas.
   “Uau...!” Com um salto enorme aterrisso no seu quarto. Simon executa uma verdadeira dança de guerra. Também ele está excitado e o seu bilauzinho está empinado como um pequeno revólver pronto para atirar. Olho para isso com o rosto levemente inclinado.
   “Você não vai fazer nada comigo, vai”?
   Ele ri. “Claro que não, ainda sou muito pequeno”.
   A resposta me tranquiliza. Só quando as pessoas forem mais velhas, vou ter que tomar cuidado. Eu me proponho a ficar criança para sempre. (Continua...)

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