segunda-feira, 23 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 7


Adriana  Oliehoek


7

“A taça, enfermeira”, chama o médico. Ele aplica o vácuo-extrator na parte posterior da cabeça do meu filho. O motor da aspiração canta suavemente no ambiente.
   “A senhora está bem assim?” pergunta o médico do alto.
   Estou de costas com os joelhos levantados na parte de cima da cama de parto. A parte inferior da cama foi desengatada e colocada de lado. As minhas amigas estão uma de cada lado. No outro lado do quarto, a enfermeira faz barulho com tampas de metal, comadres e fórceps. Alguém abre uma torneira e uma banheira se enche de água.


1950

Hannie tem a mesma idade que eu. O nosso aniversário é na mesma semana. Nem sempre estou em condições de brincar com ela, pois há muita agitação na pequena fazenda. A irmã que vem depois dela tem seis anos a menos. Depois nasceu uma criança a cada ano. Quando a Hannie tinha algumas semanas de vida, a mãe dela morreu afogada. Ela estava perturbada e pulou no canal. Felizmente, a Hannie tem uma madrasta muito carinhosa. Ela não tem nada de bruxa, como afirma a mãe da Trees.
   “Aquelas mulheres não se dão bem”, diz a minha mãe. Trees não pode brincar na casa da Hannie e a Hannie não pode brincar na casa da Trees. Portanto, eu brinco ora na casa de uma ora na casa da outra. A mãe da Trees quer saber tudo sobre a Hannie e a sua família. Uma pálpebra fica meio caída e o seu rosto mostra falsidade quando pergunta: “Quando você brincou pela última vez na casa da Hannie?” Ela me dá um pouco de medo. Talvez ela mesma seja uma bruxa. 
   Um dia, ela me conta toda a história. Ela mesma viu como o demônio, em forma de cachorro preto, pulou na frente dos cavalos que levavam o corpo da mãe da Hannie numa carruagem fúnebre para a igreja. Os cavalos se empinaram e quase se desenfrearam. Foi bem aqui, bem na frente da casa deles, na curva do caminho. “Ele veio para buscar a alma dela”, ela tem certeza. “Pois, mais tarde, quando o corpo estava no portal da igreja – suicidas não podem estar dentro da igreja e não podem ser enterrados em terra sagrada – os fiéis ouviram um cachorro latindo dentro da igreja. O sacristão foi ver e, num relance, ainda viu um cachorro preto correndo para fora. Era o demônio que veio buscar a alma dela”.
   Arrepio-me toda. Eu nunca ainda ouvira falar de Goethe, Fausto ou das superstições da Idade Média. Na minha imaginação, vejo a minha mãe pulando no canal e o demônio espreitando para levar a sua alma. Espero que a mãe da Trees esteja mentindo. A Trees também não é totalmente honesta. Um dia, quando estávamos voltando da escola para casa, ela me manda entrar na lojinha de doces: “Peça um pacotinho de chicletes e pode dizer para colocar na conta do senhor Weijers”. O dono da loja pega rapidamente de volta o pacotinho que já estava no balcão, quando repito as palavras dela. “Nada disso! Eles têm uma conta enorme que ainda não foi paga”. Eu levo um susto por causa do rosto zangado dele, como se eu fosse a ladra! Eu fujo da loja e quando, à noite na cama, me lembro de novo do ocorrido, volto a tremer de medo.

A Trees mora junto com seus pais na fazenda do avô. Tufos de cabelos brancos nascem na entrada do seu nariz e das suas orelhas. Ao andar, ele usa uma bengala com a qual, às vezes, tenta levantar a minha saia. “Não liga não”, diz a mãe da Trees, “ele está meio caduco”.
O pai da Trees é horticultor e quando o tempo está bonito construímos uma casa com as caixas destinadas a levar as hortaliças para o leilão. Tornamos o ambiente agradável com velhos trapos e cobertores e brincamos de pai e mãe. A mãe da Trees traz bolachas e refrigerantes. Certa vez, quando a casa estava pronta, as bolachas acabadas e a garrafa de refrigerante vazia, estávamos meio entediadas. “Que tal irmos para o sótão?’, eu proponho.
   Trees concorda. Entramos pelo fundo da casa, atravessamos a sala de jantar para a sala de estar e lá, atrás de uma porta, esconde-se uma escada larga que leva ao sótão. Um cheiro gostoso de maçãs, que foram colocadas ali no outono para secarem, vem ao nosso encontro. O sótão está praticamente vazio. Há alguns varais para pendurar roupa, no meio está uma mesa e, na parte inicial, há um armário enorme. Trata-se de um armário muito chique, ornamentado com entalhos e puxadores brilhantes. A parte de baixo tem três gavetas, mas essas nós já vasculhamos outro dia. Abrimos a parte de cima e encontramos dez pequenos quadros na prateleira debaixo. Colocamos um ao lado do outro no soalho. Parece uma fileira de pequenos caixões. A parte interna está revestida de renda branca e coberta por um vidro. No centro de cada um, com fitinhas cor de rosa ou azuis, há uma mecha de cabelo de criança falecida há muito tempo. “Leendert, seis anos. Marie, dez meses. Klaas, um ano. Pieternel, seis semanas. Arnold, três anos...”, leio. Todos eles irmãos e irmãs da mãe da Trees. Olho para as mechas de cabelo e, na minha imaginação, eu os rolo, um por um, nos meus dedos e os recoloco na cabecinha da criança que olha para mim com o rosto de um anjinho. Ao meu redor, no soalho de madeira do sótão, ouço os pezinhos deles correndo a passos curtos. Eles caem, levantam e enchem o espaço.
Quando não tenho nenhuma amiguinha para brincar, brinco com meus irmãos, Otto e Dirk. Revezando-nos, subimos com uma faca entre os dentes na árvore que fica atrás da nossa casa e, no ponto mais alto, onde a árvore ameaça envergar por causa do nosso peso, entalhamos as nossas iniciais na casca. 
   “Eu cheguei mais alto”, desafiamos uns aos outros, até que a mamãe põe fim à competição: “Dá aqui essa faquinha! Preciso descascar batatas e só falta alguém cair da árvore e quebrar uma perna.”
Procuramos as nossas diversões em outros lugares: subimos em pontes levadiças, fechamos – ou abrimos – os portões da eclusa. Nós mesmos determinamos a altura da água dentro da eclusa e mergulhamos até o fundo à caça de enguias. Caçamos passarinhos, peixes e rãs; escondemo-nos dentro dos montes de feno que estão secando nos pastos.
   Durante alguns anos, temos o mesmo tamanho. Tios e tias se demonstram surpreendidos: “Parecem trigêmeos!” E apontando para mim: “Essa é a Jana? Que falta de feminilidade!” Estou parecendo um menino. Não totalmente, pois, quando jogamos futebol no pasto ao lado da casa e eu marco um gol, ele não vale. 
   “Não vale”, gritam os adversários. “Ela é uma menina e só participa porque a gente está deixando”. Os meus gols não são motivo de alegria, mas de briga.
   Cuidados maternais, sim, são valorizados. Irrompe uma doença entre os coelhos que atinge principalmente os filhotes. Cada vez que o meu pai está diante da coelheira com um filhote nas mãos, eu suplico: “Dá para mim, pai. Eu quero curar o bichinho”. 
   Um sorriso tímido desenha o seu rosto: “Ele vai morrer, filha”. Eu não quero crer naquilo. Ele está vivo ainda! Seu narizinho puxa nervosamente e os seus olhinhos brilham. Só as patinhas de trás estão imóveis.
   “Não, filha; não convém”. Eu estendo a minha mão: “Por favor, pai?”.
   Ele não resiste às minhas súplicas e durante dias tento reavivar o bichinho com leite morno e bolsas de água quente. Por fim, não teve jeito. Tenho que enterrar o coelhinho, em algum lugar na horta. Certo dia – já se passaram algumas semanas - quero ter a certeza que ele morreu de fato e afasto a terra que o encobre. Durante alguns instantes, penso que o coelhinho ainda vive, pois a barriguinha está movendo! Mas, então, vejo que é apenas a pele dele e lá dentro está cheio de vermes, larvas e besouros.

Chegou o tempo das férias grandes. A minha mãe permite que eu passe uma semana na casa da minha tia Marie, a irmã da minha mãe, que mora na mesma aldeia dos meus avós. A minha mãe também é de lá. Junto com a minha prima Lena, andamos pela aldeia e fazemos compras para a nossa avó.
   Pessoas que eu não conheço abordam a gente: “Você é a filha da Cornélia?”
   “Igualzinha à mãe”!
   Lena é a filha mais velha. Ela tem um irmão mais velho e, pelo resto, só irmãs. O pai dela é um pequeno horticultor e toda a família tem que ajudar na horta para mantê-la funcionando. A minha prima chora. Ela não quer trabalhar todos os dias depois da escola, nos sábados e nas férias. “Eu odeio aquela horta!”, ela grita zangada. Para mim é uma diversão: colher vagens, fazer maços de flores e, de vez em quando, uma pausa no abrigo. Estou sentada entre caixas em que estão secando bulbos de flores e sinto o aroma de café num bule. Todos nós ganhamos um pouco de café e comemos um sanduíche. Junto com o meu primo, pegamos aranhas que colocamos, dois a dois, num pote de vidro tampado. Em seguida, seguimos atenciosamente a luta à vida ou morte das duas. As aranhas se combatem com as patas cabeludas até que uma fica vencida e se encolhe como algo insignificante.  
   No fim do dia, cansados e empoeirados, nadamos num lugar seguro no rio, o Does, que banha a horta. O meu primo parece um rato-d’água. Ele mergulha mantendo seus olhos azuis abertos e traz pedrinhas bonitas do fundo do rio, vindo à tona bem ao meu lado. “Venha”, diz ele, “eu te empurro para o outro lado do rio”. Sentada numa tábua larga, navego sobre o grande rio. Somos duas crianças felizes. A profundidade da água não nos assusta. (Continua...)

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