terça-feira, 31 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa) – 8


Adriana  Oliehoek


8

“Força, senhora! Quando vier a contração, faça força”!
   “Isso! Pode fazer força! Quando a contração for embora, pode descansar”.
   “Olhe, sinais de movimento”, mostra o médico às minhas amigas. “Agora, a criança gira em torno do próprio eixo”.

*

Com fúria a criança golpeava o lado interno do meu abdômen. Eu estava grávida de cinco meses.
   “Não gosta quando me deito de bruços?”
   “Está faltando espaço?”
   Eu me virava. Deitada de costas, apalpava a minha barriga desnudada. A criança ondulava debaixo das minhas mãos. Ela puxava a minha barriga para a esquerda, para a direita e, por alguns instantes, mostrava um rastro de uma mãozinha ou de um pezinho.
   “Ah! Ah!, está querendo brincar de pique”.
   “Tudo bem. Peguei. Sua vez!”, e dei uma tapinha onde o sentira pela última vez. A parte inferior do meu corpo ficou assustadoramente calma, assim como o mar antes de uma tempestade. Até que, de repente, ele emergiu como a baleia branca, Moby Dick.  A minha barriga entrou em distúrbio e ele me deu alguns golpes bem no lugar onde eu dera a tapinha.
“Ai!”, eu ria alegremente.


1951

O meu cabelo loiro está armado em duas enormes tranças que vão além dos meus ombros. Ou será que eu já os tinha cortado? A minha mãe está novamente doente e a minha irmã mais velha tem que cuidar da família grande. Escovar todos os dias o meu cabelo e fazer tranças é difícil demais para a minha irmã.
   “Que pena desse cabelo bonito”, diz o cabeleireiro, olhando no espelho e balançando a cabeça em sinal de desaprovação. Durante algum momento, ele hesita como se estivesse esperando um anjo que anulasse a ordem de cortar. Mas não acontece nada e, com uma cara de arrependido, corta as minhas tranças.
   Naquele período, porém, não são apenas as minhas tranças que perco. Dois pilares em que pousava a minha confiança infantil desabam: Papai Noel não existe e crianças não nascem de um pé de repolho roxo.
   Pela última vez avanço pelo tapete, no meio do salão de eventos.  Lá está o homem, vestindo suas roupas vermelhas, que durante anos foi a esperança de algum brinquedo. Desta vez, vou prestar atenção e não vou me deixar enganar pelas aparências. Chegando mais perto, vejo a pele maquiada e a barba mal colada que esconde uma boca se movendo. É verdade o que as minhas amigas contaram: “É um homem disfarçado”! 
   A cidade iluminada com lojas enfeitadas, aonde a minha mãe me leva todos os anos e que evoca em mim tanta admiração, não é uma prova da sua existência, mas um complô de gente grande.

O Otto fez a sua Primeira Comunhão e ganhou, como presente, um livro: ‘O Pão dos Anjos’. Eu adoro ler aquele livro. Ele trata da perseguição dos primeiros cristãos. Com a respiração presa em algum canto da casa ou, à noite, na cama, eu leio sobre a sua fé inquebrantável e o seu martírio: o jovem Estêvão apedrejado; a pequena Inês exposta nua e perfurada com um estilete; o São Lourenço na grelha ardente: “podem me virar, deste lado já estou assado”.
A verdade é sagrada, mas gente grande – descubro cada vez mais – tem os seus segredos. Já não me lembro da ordem em que aconteceu. Foi primeiro o Papai Noel que sumiu do palco? Ou foi o mito das crianças recém-nascidas? 

Dinah, que senta comigo na mesma carteira escolar, já tem seios. Um dia ela me conta sem rodeios: “A Tineke vai ter um nenê”.
   “Como é que você sabe disso”?
   Quando a minha mãe com o rosto arrepiado de frio e um xale envolto no pescoço traz um repolho roxo da horta para dentro da casa, procuro prestar atenção. Na sala, o único cômodo aquecido na nossa casa inclinada, ela prepara o repolho. Eu subo meio na cadeira e meio na mesa e aproximo os meus olhos o mais possível da tábua em que ela vai cortar o repolho.
   “Cuidado! Senão você vai perder um dedo”.
   Rapidamente puxo as minhas mãos para trás. Com grande interesse, olho como a minha mãe procura com a faca grande o lugar certo na folha externa arroxeada. Com a outra mão ela faz pressão contrária. Ela inclina o corpo levemente e, devagar, a faca escorrega pelas túnicas comprimidas, das quais mais tarde acho que são parecidas com o cérebro, mas que nunca me surpreendem com um novo irmãozinho. Este sempre aparece no berço quando a gente menos espera: de manhã, ao acordar, ou depois de uma visita demorada na casa da avó ou tia.
   “Ela está com uma barriga enorme.” Com a mão, a Dinah faz um meio círculo entre os seios dela e as coxas.
   “O que isso tem a ver”?
Eu conheço bem a Tineke. Às vezes, ela ajuda a minha mãe na limpeza geral, no início da primavera. Tudo na Tineke é grande e forte: os pés, as pernas, o quadril. Cantando, ela enrola o pesado tapete de fibras de coco e o carrega sem esforço nenhum para fora, onde o joga com um único movimento sobre o batedouro. Com batidas fortes, ela descarrega a sua força sobre o tapete. Bem feito, penso, pois ele machuca os meus joelhos, quando tenho que me ajoelhar à noite diante de uma cadeira para rezar a oração da noite. Grossas nuvens de pó envolvem a Tineke e o tapete. Mas a Tineke não se importa. A sua boca larga abre-se num riso franco, mostrando os seus dentes brancos.
   Ela só tem medo de ratinhos. Em pânico, foge em cima do telhado do quarto de despejo, quando o meu irmão Dirk solta um camundongo perto de seus pés. Em seguida, com as pernas abertas e soltando um grito de pavor, salta do telhado. A sua vasta cabeleira encaracolada e ruiva esvoaça como uma coroa em torno da sua cabeça. A corrente do ar infla a sua saia e concede-me ver de relance as suas coxas brancas e fortes e uma calcinha folgada. Nessas alturas, a Tineke já não está na escola. Ela só conseguiu chegar até o quarto ano.
   À noite, estou sentada à mesa com meus seis irmãos e a minha irmã. A minha mãe pega os pratos que nós lhe estendemos e serve batatas de uma grande panela que está no meio da mesa.
   “Sabe o que a Dinah contou na escola...”, tento sobrepor a minha voz ao barulho da vozearia. A mamãe distribui alface e põe um pouco de caldo de manteiga nas batatas em cada prato.
   “Não quero alface”, diz o meu irmão Ward. Ele não gosta de verduras e puxa o prato de volta no momento em que a minha mãe quer servir a alface. “Para com isso!” Mamãe pega as folhas que caíram na mesa e as põe no prato dele. “Eu quero que você pelo menos experimente. Depois você ganha um pouco de purê de maçã”.
   “Ela diz que os bebês saem da barriga da mãe. Esquisito, né?”
   Durante alguns instantes há um silêncio, mas, logo em seguida, todo mundo volta a falar ao mesmo tempo. Eu olho para o meu prato. Eu também não gosto de alface.
   Depois da janta, a minha mãe pergunta: “Jana, você quer ajudar lavar a louça?”
   Ouço um tom elevado no timbre da sua voz. Contém uma promessa e eu concordo sem fazer objeção. Pouco tempo depois, estou com um pano de prato nas mãos sob o teto baixo do puxadinho, onde fica a cozinha. Mamãe coloca um pouquinho de detergente na bacia de lavar louça e esvazia nela uma caldeira de água quente. Uma grossa camada de espuma forma-se em cima da água. Um cheiro fresco e picante se espalha pela cozinha. Com o extensor da torneira, ela esguicha um jato de água fria, causando um buraco redondo no monte de espuma. Pega a escova e ataca a montanha de pratos e panelas sujos. Antes que o primeiro prato esteja no escorredor, ela diz: “Crianças crescem na barriga da mãe, sim”.
   Eu pego o prato e enxugo-o com movimentos pouco práticos.
   “Você poderia ter sabido. Está na oração que rezamos todos os dias. Escute só: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor esteja convosco e bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”. Ouviu? “Bendito é Jesus, o fruto do vosso ventre”, Jesus nasceu da barriga da Maria”.
   “Oh!” Sinto-me envergonhada. Todo esse tempo eu não soube o que eu rezava. Da barriga da mãe? Da mesma maneira como acontece com os animais?
Eu sinto o cheiro de gatinhos recém-nascidos. “Tudo bem”, tranquilizo a gatinha que se contorce na caixa de papelão. “Está vindo mais um filhote”? Estou sentada no chão frio de cimento do quartinho de despejo. Faço um afago. Ajudo a secar um filhote que pego nas mãos com cuidado. Reparo os olhinhos fechados e olho para a boquinha cor-de-rosa que parece estar à procura de algo. Seguro o bichinho contra o meu rosto e sinto o ar de vida nova. É assim que nasce uma criança? Mas a barriga é a fonte daquilo que é considerado sujo e fedido. Isso é nojento. É impossível que a santa Virgem Maria faça uma coisa dessas. Maria era casta e nasceu sem pecado original. Ela nem precisou de ser batizada como todas as outras crianças. 
   “Também na minha barriga está crescendo uma nova criancinha”. A minha mãe solta um prato na bacia e levanta-se da sua posição inclinada.
   “Repare”, diz ela enquanto dá um passinho de lado.
   Eu olho para a parte de frente do seu corpo, coberto por um avental preto com flores amarelas e vermelhas que está esticado em torno do seu abdômen volumoso. 
   “Reze para que seja uma irmãzinha! Você já tem muitos irmãos”. Ela volta-se para a pia e pega o prato que deixara na bacia. Dois meses depois, nasce o meu irmãozinho Freek. (Continua...)

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