sábado, 14 de agosto de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - 6



Adriana  Oliehoek
6

É quase meia noite. Quando se rompe a bolsa-d’água, o médico constata alguns centímetros de dilatação. Estou no meio de uma poça de água quente que difunde um cheiro meio adocicado. As contrações são mais repetidas e cada vez mais fortes. Gemendo, tento pôr em prática as aulas de ginástica. As minhas amigas me encorajam, me seguram e fazem uma leve massagem nas costas que parecem estar partidas ao meio.
   Não é dor. É violência. Violência primordial que começa no alto das minhas costas com um leve puxar e que, em seguida, se irradia pela região lombar, as nádegas e o abdômen até que todo o corpo inferior fica preso numa força de que é impossível escapar.
   A minha respiração se torna ofegante até que a dor se atenua. O descanso é de curta duração. Aí começa de novo: mais forte, ainda mais forte. Chuvas, trovoadas, tempestade. Um furacão de ira.
   “Quando você pensa que já não vai aguentar mais, chegou a hora”, explicaram as mulheres.  
   “Podem levá-la para a sala de parto”, diz uma voz masculina.


1950

No dique, em frente à fazenda de Juffermans, as primeiras campânulas brancas se anunciaram e na fazenda do nosso vizinho já nasceu o primeiro cordeirinho. O sol está ficando mais forte e o calor acaricia as minhas faces. Uma brisa fresca sopra pelos meus cabelos e espalha o cheiro de esterco e sementes germinando. As flores do salgueiro transformam-se em folhas delgadas. Não vai demorar muito e a primavera irrompe.  Crocos amarelos, violetas e brancos emergem da grama e, ao pé da berma, a água reflete as pequenas flores amarelas do tussilago e das quelidônias.
   A minha mãe deixa a porta da nossa casa torta totalmente aberta. Um ladrilho levantado evita que ela volte a fechar-se. No sótão, ela tira os cobertores das camas. Com os braços lotados, os seus pés procuram com cuidado os degraus da escada íngreme ao descer do sótão. Sempre quando chega a primavera, ela pendura todos os cobertores no varal que o meu pai esticou ao longo da vereda pela horta.  No ar excitante da primavera, eu e meus irmãos corremos entusiasmados por entre os cobertores coloridos. Brincamos de esconde-esconde e contamos até cem: “...Noventa e oito, noventa e nove, cem! Já vou!”
   Ao mesmo tempo, a mamãe arrasta colchões e carrega baldes de água com sabão. Ela tira as camas do lugar e serra pedacinhos dos pés das mesmas, tentando fazer com que elas fiquem niveladas no soalho inclinado do sótão. Quando papai chega em casa às cinco e meia, ele a encontra com o rosto avermelhado, teias de aranhas no cabelo e envolta por um cheiro de amônia. Juntos batem os cobertores e preparam o sótão para a noite.
À noite, quando estou na cama, sinto que o inverno se foi.

O cavalo, no pasto ao lado da nossa casa, corre de um lado para o outro, acompanhado por um potrinho. O chão turfoso ondeia debaixo dos seus cascos. A gata deu à luz cinco filhotes. Podemos ficar com dois, os outros o meu pai leva para a família Onderwater.
   “Por que a família Onderwater quer todos esses gatinhos?” Só muitos anos mais tarde, eu entendi que o sobrenome dessa família clássica da nossa aldeia significava ‘debaixo da água’ e que o meu pai afogava os bichinhos. Também as coelhas ganham filhotes, mas esses não vão para ‘Onderwater’. Perto do Natal, o meu pai os vende. Às vezes vivos outras vezes prontos para a panela. Ele corta o pescoço deles, faz um furo nos pés traseiros e pendura-os com dois pregos fixados na trave que segura o teto do quarto de despejo. Em seguida, tira a pele, abre a barriga e remove os intestinos.
Uma galinha acompanhada de oito pintinhos que piam sem parar cisca a terra à procura de minhocas. Outra galinha choca teve menos sorte. Todas as noites, uma ratazana rouba um ovo dela. O último ovo, já dando sinais de rompimento, fica ao lado do ninho. Cuidadosamente, descasco o ovo dando liberdade ao pintinho enrolado. Envolvo-o no lenço vermelho do meu pai e coloco-o numa latinha vazia de sardinhas sobre a pequena espiriteira.
   “O que você está fazendo?”, pergunta a minha mãe ao entrar na cozinha.
   “Papai deu licença”.
   “O seu pai não bate bem”.
   O meu pai aparece na porta e diz: “Pode jogar para o porco. Isso não vai dar em nada”. No momento em que eu penso que ele deve ter razão, uma das perninhas se move.
   Coloco o pintinho junto à galinha com os outros pintinhos. O meu pai acha que vai ser um franguinho. Eu espero que não, pois nesse caso ele ainda vai ser morto, como aconteceu com aquele leitãozinho. É verdade que era feio, mas eu gostava dele. Era o menor dos dezoito e para ele não sobrou nenhuma teta. O meu pai queria matá-lo, mas o Otto pediu para que ele e o seu amiguinho pudessem fazer isso. No quarto de despejo, o meu pai construíra um tanque onde minha mãe enxaguava as roupas. Pois bem, o meu irmão e o amiguinho deixavam o leitãozinho nadar no tanque até que afundasse. Aí, eles o tiravam para fora, esperavam um pouco até que ele voltasse a respirar e recomeçavam a brincadeira. Eles riam pra valer. Mamãe ficou furiosa e chamou o meu pai para mostrar em que é que deu deixar o leitãozinho com os meninos.

O meu pai fica pouco em casa. Quando acordo de manhã, ele já partiu para a fábrica numa cidade a seis quilômetros. Lá ele é fogueiro das fornalhas de fundição de ferro. Esse trabalho não é nada saudável, pois o calor é intenso. À noite, depois do jantar, ele procura ganhar mais um pouco de dinheiro nas fazendas, na vizinhança, onde constrói, com tijolos usados, pocilgas e escoadouros de esterco. Ele põe em prática a sua verdadeira profissão, pois, propriamente, é pedreiro, assim como o pai, o avô, o bisavô e outros antecedentes dele. Observando um muro, com um olho fechado, ele é capaz de dizer se ele está reto ou não. 
   O que o meu pai mais adora é caçar e pescar. Ele parece um daqueles germanos sobre quem se escreve nos livros de história na escola. Ele só não bebe nem joga dados. Com o seu barquinho a remos, joga redes afuniladas com o objetivo de pegar enguias. A minha mãe acha que enguias têm gosto de lodo, mas ela não gosta muito de peixe.
   No outono, ele vai caçar lebres com seu amigo. Meu pai sabe atirar muito bem e, na quermesse, ele acertou no alvo e ganhou um grande urso de pelúcia. Os meus irmãos maiores também sabem atirar e atiram em pardais. Eu não gosto de espingardas, muito menos quando eles apontam para mim e gritam: mãos ao alto! Aí eu começo a chorar.
   “Ora, não está nem carregada!” Com desprezo, eles abaixam a arma. Mas eu acho que nem sempre se pode ter certeza disso. Outro dia, o meu pai leu no jornal que um menino morreu, porque o seu irmão tinha atirado nele. E, pouco tempo atrás, a minha irmã atirou no próprio dedo. Bem feito! Talvez assim ela deixe de atirar nas andorinhas que pousam nos fios elétricos. 

A minha amiga Trees ganhou uma irmãzinha; na casa da minha outra amiga, Hannie, também ganharam um nenê, um menino, e na fazenda do Sr. Borst há duas menininhas no berço. As mães acamadas se deixam mimar com pedaços de bolos e bifes suculentos. “São as nossas férias anuais”, dizem elas. Eu não acho graça nenhuma passar as férias na cama. Nas férias, sempre vou passar uma semana na casa da tia Marie, onde posso brincar com a minha prima Lena.
   Neste ano, nós não ganhamos um bebê. No berço está apenas um monte de roupas que precisam ser consertadas. A minha mãe tem que passar uns dias no hospital e, por isso, eu vou ficar na casa da Trees. A mãe dela concordou e a Trees ficou contente. Ela tem alguns anos a mais do que eu, mas na vizinhança não há meninas da idade dela. Eu tenho que dormir com ela na mesma cama. Quando estamos debaixo dos cobertores, ela tira a calcinha, pega a minha mão e a coloca entre as pernas dela. “Está sentindo?” diz. “Está sentindo?” Parece a barba do meu pai quando está crescida. Em seguida, ela conduz a minha mão para a parte superior do corpo e a cavidade da minha mão se enche com carne mole tendo no meio o mamilo, duro como uma borrachinha.
   “Os meus seios estão crescendo”. Em seguida, ela passa a mão dela no meu corpo, mas, felizmente, não há nada de errado comigo. Fico feliz quando a minha mãe volta do hospital e eu posso retornar para casa. (Continua...) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário