sábado, 31 de julho de 2010

KALA KALA (O pássaro que voa)


3

As contrações ocorrem agora de cinco em cinco minutos. São nove horas quando telefono para as minhas amigas:
   “Venham! Chegou a hora!”
   Duas horas depois, estamos nós três sentadas à mesa. Tomamos café e contamos umas às outras histórias inacreditáveis. Como aquela do pequeno Carel, filho do diretor da escola, que nasceu no meio da ponte Brienenoord, em Roterdã. Os pais dele ficaram presos numa fila, com mais três filhos no banco de trás.
À tarde, comunico-me com a enfermeira chefe do hospital.
   “Venha para a maternidade!”, ela me propõe.
Não tenho pressa. É o meu primeiro filho. Com o segundo, eu sei, a gente tem que ter mais cuidado. Pouco antes de escurecer, o táxi está em frente à porta. No batente, viro-me. Por mais uma vez, os meus olhos observam todos os cantos do pequeno apartamento onde, até agora, eu morava sozinha. Fecho a porta. A imagem do pequeno berço continua, durante alguns instantes, gravada na minha visão: um forro cor-de-rosa estampado com florzinhas azuis. Entre os pequenos lençóis bem passados, um bonequinho de flanela sem rosto fica à espera.


1949

Ainda no começo da primavera, uma cama hospitalar foi colocada na sala ‘nobre’, na parte de frente da casa. O médico mandou que minha mãe descansasse. “Isso não é nada fácil com oito filhos”, a ouço dizer à vizinha.
Numa certa noite, estou deitada no chão do sótão e espio por uma fresta entre as tábuas do soalho. Olho para a minha mãe na cama. Embora já fosse tarde, o médico veio vê-la. Ele está sentado numa cadeira, ao lado da cama, enquanto segura o pulso dela. Ela está de costas, o corpo pela metade coberto por uma colcha, e seus olhos vagueiam inquietos pela sala, sobre o papel de parede e, de vez em quando, pelo teto. Olho para a camisola suavemente rosada e para a barriga arredondada, sem entender o significado daquilo. De repente, os olhos dela se fixam na fenda entre as tábuas. Durante um instante, os nossos olhos estão presos uns nos outros. Sinto um calor na minha nuca e, com destreza, sem deixar ranger nenhuma tábua, pulo para a minha cama. Quando, um pouco depois, o meu pai está ao lado da minha cama, finjo que estou dormindo.
   Algumas semanas depois, a mamãe é levada com urgência para o hospital. Eu fico na casa da tia Door com seus filhos grandes: Joke, Wil, Jacob, Arno, Kees, Nellie e Grietje. Nelli, que tem olhos muito amáveis, é quem mais se ocupa comigo. A varíola deixou a sua pele cheia de buraquinhos e quando ri a sua boca se entorta. Grietje é a mais nova. Ela tem quatorze anos. Ao completar dezessete, ela morreria de meningite. Por enquanto é o orgulho da casa, é bem inteligente e estuda na Escola Normal.
   Joke é a professora do primeiro ano da Escola Fundamental. Eu estou no segundo ano. Ela me leva na garupa da sua bicicleta para a escola. Lá eu conto à irmã Brigita e aos meus coleguinhas de classe que ganhei dois irmãozinhos. À tarde, um pouco preocupada, estou de novo junto à mesinha da freira. Sei que a gente tem que estar triste quando alguém morre e, certamente, quando se trata de duas pessoas, mas eu não sinto nada. Com um olhar sério e uma voz cavernosa, tento esconder essa falha: “Infelizmente, os meus irmãozinhos que acabam de nascer já morreram”. Sábado à tarde, a Nellie me dá um banho numa grande tina de zinco que está, numa cadeira, no meio da sala,. De repente, um soldado enorme entra na sala. É Karel, o namorado dela, que na sua farda azul da Marinha olha para mim. Pela primeira vez, me envergonho por estar nua, mas não sei onde me esconder. Nellie simplesmente continua dando banho em mim : “Abra as pernas um pouco”, diz ela com serenidade imperturbável.
   À noite, estou sozinha numa cama de ferro, no meio de um grande sótão, não muito longe do alçapão abaixado. Tanto espaço me atemoriza. Eu imagino que a minha cama seja um navio, mas olhando em meu redor só vejo um deserto amarelado. Cobras, crocodilos, hipopótamos e outros bichos esperam no escuro dos cantos embaixo do telhado até eu ser vencida pelo sono. Eu pelejo a luta de Moisés e Arão contra Amaleque durante o êxodo pelo deserto do Monte Sinai. Se eu fechar os olhos, os monstros virão até mim e me devorarão, mas, se conseguir manter os olhos abertos, eles não terão coragem de saírem dos seus esconderijos.   
   Cansada de prestar tanta atenção, caio no sono, mas acordo com um susto. A luz está acesa e alguém está debruçado sobre mim. Cuidadosamente, espio por entre os meus cílios. É o Karel. Permaneci imóvel, com os olhos fechados. Em seguida, ele vira as costas e desce a escada com passos suaves.
         No dia seguinte, no domingo à tarde, Nellie e Joke me acompanham numa visita à minha casa. A porta está aberta e há muita gente entrando e saindo. Quase não reconheço a sala ‘nobre’. A cama da minha mãe sumiu e no lugar dela há uma mesa em cima da qual está um pequeno caixão quadrado. Dentro dele, bem juntinhos, dois corpinhos de bebê, enrolados em algodão. Só os rostinhos e as mãozinhas estão visíveis. Tão pequenos! Tão tenros! Os olhinhos estão fechados e as minúsculas pestanas lançam uma sombra suave nos rostos como se fossem finas teias de aranha. Qual nácar com listinhas azuis, as miúdas unhas brilham nos dedinhos entrelaçados. Durante alguns minutos, a minha respiração se prende na minha garganta. É como se eu tivesse consciência de que esta escultura de Deus não podia ser perturbada.
(Continua...)

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