segunda-feira, 26 de julho de 2010

KALA KALA (O pássaro que voa) 2

Sábado de manhã acordei às seis horas. Durante a noite tenho que me levantar no mínimo duas vezes para urinar. Nove meses de gravidez me transformaram num bonequinho Michelin com sutiã número 46. Neste espaço de tempo, o meu bebê desenvolveu-se de uma única célula fecundada num ser humano, composto de maneira complexa: uma evolução de nove milhões de anos. Quem é capaz de lembrar-se da sua existência unicelular? Meu filho deve pensar, como eu, que ele sempre existiu.

Lentamente giro em torno do meu eixo e rolo para a beira da cama. Enquanto os meus pés procuram o chão, empurro com as mãos o meu corpo para cima. Arfando pelo esforço, fico sentada e olho para a minha barriga que está apoiada nas minhas coxas. A pele branca está tão esticada que parece querer estourar.

Com os pés numa posição de dez para as duas, eu procuro equilíbrio e levanto-me com cuidado. Cambaleando, dirijo-me ao toalete. A dor nas costas é insignificante, como também as puxadas nauseantes à esquerda e à direita no meu abdômen. Um alívio é a micção que não parece ter fim. Nesse momento, vejo a segregação rosada na minha calcinha.

1947

Num belo dia, em maio, o meu pai carrega uma carroça com todos os pertences da casa, incluindo as galinhas, os coelhos e o gato. Ele pega nas rédeas e sobe na boleia. “Opa!”, diz ele para o cavalo.

Eu tenho cinco anos. Deixamos a casa onde cinco irmãos, a minha irmã mais velha e eu mesma nascemos. À tarde, saindo da escola, vou para a minha nova casa, segurando a mão da minha irmã mais velha. O céu está azul. Tenho sede. Mechas de cabelo que se soltaram das minhas tranças grossas colam no suor ao longo das minhas têmporas. Já devo ter dado mais de cem passos sobre os ladrilhos tortos que pavimentam o caminho que é ao mesmo tempo o dique do canal. Em torno de mim só vejo pastos. Pontes levadiças sobre o canal protegem o acesso às casas. As residências e os estábulos do gado estão escondidos atrás de gigantescos salgueiros-chorões dos quais as extremidades dos ramos alcançam a superfície da água. Flores brancas na cerca ao longo do caminho - flores de alfena, diz a minha irmã – espalham um aroma adocicado. Elas me deixam um pouco enjoada. “Um, dois, três, quatro...” Vou contando os cordeirinhos num pasto. Eles saltam em todas as direções, levantando as quatro patinhas ao mesmo tempo do chão. As suas mães acompanham-nos, nervosas, com passos curtos e rápidos. Eu ouço o balido delas:

“Cuidado com o riacho”.

“Não, não brinque com aquele cordeiro”.

Finalmente, a minha irmã aponta com o dedo uma casa velha, de um lado um pouco afundada:

“Veja! É aquela”!

A casa fica ao pé de um declive. As paredes são feitas de pequenos tijolos vermelho-escuros. O telhado está coberto com telhas alaranjadas. Uma trilha descendo em direção da casa está coberta de cinzas e acompanha um gramado que tem uma cerca viva no centro. Lá, mais tarde, brincarei de pega-pega com meus irmãos. A todo vapor corríamos em torno da cerca viva, tentando evitar pisar nas fraldas que alvejavam na grama.

Todos os dias, a minha mamãe carrega um balde cheio de fraldas para o campinho. As suas mãos ligeiras procuram as pontas e com um estalo estende os panos sobre a grama. Às vezes, a chuva ameaça e, então, olha preocupada para o céu e, quando as primeiras gotas começam a cair, ela dá alarme:

“Albert! Meninos! A roupa!”

Todos nós corremos para fora e buscamos a roupa quase seca. Na sala, espalha-se um cheiro fresco de roupa alvejada ao sol.

Uma larga passagem entre a nossa casa e o estábulo do vizinho dá acesso ao fundo da casa, onde está a única porta. Atrás da casa há uma horta grande e atrás da horta um pasto que se estende até o horizonte. No espaço ladrilhado entre a casa e o quarto de despejo, está o cercado de bebê com o meu irmãozinho mais novo, Ward. O cabelo dele é escuro, os olhos castanhos e as bochechas vermelhas. Descalço, ele dança no cobertor velho que forra o chão no chiqueirinho.

“Oi! Gorduchinho gostoso!”

Eu e a minha irmã mais velha disputamos em fazer cafuné nele.

“Sair! Sair!”, ele pede, estendendo os bracinhos curtos. A minha irmã o levanta e juntos entramos na casa.

Não faz nem um mês que estamos morando na nova casa quando nasce outro irmãozinho. Pelos vitrais da parte superior das janelas, a luz entra em cores vermelhas, violetas e amarelas, brinca no papel da parede e dança sobre o berço que está num canto do quarto de meus pais. A mamãe está na cama e diz que machucou a perna:

“Venha ver!”, ela encoraja.

Jaap é o primeiro bebê na nossa família de cujo nascimento me lembro. Ele está deitado meio de lado entre os pequenos lençóis trabalhados com renda branca. Os seus olhos escuros me olham fixamente. Queria dar- lhe uma mão, mas um dedo é o suficiente. Na sua roupinha de malha brilha uma medalha coberta por um esmalte azul. Nossa Senhora o protegerá. O dia novamente está ensolarado quando, com Otto, posso ir contar aos vizinhos da nossa casa antiga que ganhamos mais um irmãozinho.

“Ele se chama Jaap e tem cabelos escuros com uma mecha de cabelos brancos no meio”.

Ganhamos refrigerante e bolachas que comemos com mordidas pequenas. Em seguida, voltamos pelo longo caminho, acompanhando o canal, passando pela curva, a igreja, a escola e as fazendas. Cada vez, ao passarmos por um pátio de fazenda, cachorros latem e esticam a corrente numa tentativa de atacar-nos. Seguro a mão do Otto com força. O velho trapeiro, Beijzerbergen, vem ao nosso encontro no seu triciclo. Com as duas mãos seguro o Otto, pois o Beijzerbergen é conhecido como o louco da aldeia.

“Jerusha­laim, Jerushalaim”, ele canta em voz alta.

A filha dele cantava em óperas, mas durante a guerra, ela e sua mãe foram levadas pelos alemães para um campo de concentração. Nunca mais ele teve notícias delas. Ele passa por nós no seu triciclo cheio de trapos e bugigangas. Também a sua casa está cercada de coisas velhas. Por suas lentes que parecem fundos de garrafa ele olha para o céu. Eu sigo o seu olhar, mas não há nuvem nenhuma no céu.

Finalmente, depois de muitas curvas no caminho, chegamos em casa. Os meus sapatos marrons estão da cor de cinza de tanta poeira e tenho uma sede enorme.

“Pode beber da torneira”, diz a minha mãe. Jaap mama no peito dela.

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