sexta-feira, 23 de julho de 2010

KALA KALA (O pássaro que voa)


1

É domingo de manhã e estou sendo levada à sala de parto. Seis pares de mãos cuidadosas ajudam na passagem para a mesa de parto. Em torno de mim reina uma tranquilidade gélida e na luz intensa das lâmpadas de néon o ambiente reflete um aspecto pálido como se fosse uma paisagem lunar.

No meu campo de visão, por entre as minhas pernas, a figura do ginecologista torna-se gigantesca. Ele enche uma seringa com um líquido anestesiante. Uma dor surda espalha-se por meu traseiro. Segurando firmemente uma tesoura na mão, ele espera a próxima contração. O meu abdômen se contrai. Chiando suavemente, a tesoura corta na minha carne. A toalha de mesa de pelúcia fazia um barulho semelhante quando, em criança, tentava cortá-la com a tesoura da minha mãe. Surda também era a dor causada pela tapa que ela me deu então.

“Está doida? Como pode fazer uma coisa assim?”

1944

O meu irmão, Otto, um ano mais velho, é o preferido da minha mãe. O seu nascimento, um mês antes de estourar a Segunda Guerra Mundial, é para ela um grande alívio. Ele é um menino ariano com cabelos loiros e olhos azuis que brilham ainda mais pela malha azul que ela tricoteara para ele. Com o Otto nos braços, mamãe pode misturar-se entre os alemães. Basta um sorriso dele e o alemão mais grosseiro transforma-se numa pessoa melancólica com saudades do seu ‘Heimat’. Eu já tenho menos chance de sensibilizar, pois os meus olhos são verdes, embora tenha os cabelos loiros. Além disso, sou muito arredia: assim que alguém olha para mim, começo a chorar. Com mais razão ainda quando esse alguém é um alemão gordo que quer saber se o meu pai está escondido em algum lugar e, por não achá-lo, bebe o nosso leite. Não, não sou fácil para a minha mãe. E também o meu irmãozinho Dirk, que nasce depois de mim na metade da guerra, é melhor deixar quieto no berço. Desse aí não se aproveita nada com aqueles olhos escuros, cabelo castanho e o corpo repleto de eczema. Minha irmãzinha, Tônia, certamente, vai ter olhos bem escuros e cabelo preto.

Em cima do dique, do outro lado do canal, está uma carruagem preta puxada por dois cavalos pretos. Uma pluma branca enfeita as suas cabeças. Atrás da carruagem, diante das portas totalmente abertas, vejo o meu pai. As suas mãos carregam um pequeno caixão.

É a minha lembrança mais remota; uma imagem estática. É como se eu olhasse para uma foto preto-branca que está impressa na minha memória. Procuro imaginar o lugar onde eu devia ter estado. Atravesso o canal sobre uma estreita ponte giratória, desço a trilha que vai do dique até a minha casa. A porta que fica no fundo da casa está aberta. Na sala, diante da janela, fico nas pontas dos meus pés, segurando-me no caixilho de madeira. Qual é o tamanho de uma criança de apenas três anos? É um dia cinzento, fim de outubro. No pequeno caixão está a minha irmãzinha, Tônia.

“Quando esta criança nascer, a guerra estará terminada; ela é a mensageira da paz”, dizia o médico em cada controle. O fim da guerra, porém, ainda está longe. No oeste da Holanda, o meu pai, a minha mãe e os seus seis filhos ainda têm que atravessar o pesado ‘inverno da fome’ de 1944. A data prevista para o nascimento da criança já passara há muito tempo quando, finalmente, a minha irmãzinha nasce. Com os seus ombros largos e um peso de seis quilogramas, dificilmente ela passa pelo canal da vida. O médico transpira na luz escassa de uma lanterna no quarto escurecido. Em vão. No fim do parto, a única pessoa que chora é a minha mãe.

É o meu primeiro encontro com a morte. Nossos caminhos, porém, se cruzarão ainda várias vezes. Às vezes, até parece que eu mesma a procuro: puxo um caldeirão com água fervente sobre o meu corpo; caio no rio e fui parar embaixo da ponte que fica a apenas dez centímetros da superfície da água, sendo salva na última hora; atravesso a rua sem olhar e sou atropelada por uma moto. Nas outras vezes, ela chega em casa enquanto eu apenas a observo.

(Continua)

Um comentário:

  1. Tio, parabéns pela iniciativa!
    É sua história também,tio, e asim, vou te conhecendo um pouquinho mais... muito emocionante...
    Te adoro!
    Beijão,
    Sandra

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