sábado, 18 de fevereiro de 2012

Contos da Adriana


A VISITA

Parte 1
Cornélia abre os olhos e, meio atordoada, avista o branco de um teto, enquanto emerge da escuridão profunda da inconsciência. Pouco a pouco, os seus pensamentos começam a se formar: Onde estou? Onde está Adriano? Um pânico toma conta dela: Adriano! A sua boca se abre sem emitir som algum. Ela tenta estender a mão para o lado esquerdo da cama onde Adriano costuma dormir. Uma dor dilacerante faz com que aborte a tentativa. Ah, sim! Agora ela se lembra. O braço. Ela machucou o cotovelo. É mais fácil mexer o braço direito e, hesitante, sua mão vai à procura de alguma coisa. Os seus dedos deslizam sobre uma estreita faixa de algodão, além da beirada dura da cama até que percebem o frio do papel de parede. Ela se dá conta que está numa cama estreita, uma cama individual. Em lugar nenhum, sente calor humano; nenhum sinal dos braços e pernas fortes do Adriano.
Cornélia sente um calafrio; os seus lábios estão ressecados e pequenas gotas de suor frio brilham na sua testa. Ela acordou por causa de uma dor apertando o seu peito. Cuidadosamente, inspira e expira. O seu olhar divaga pelo quarto. Ela se encontra num quarto pequeno com uma janela apenas. Uma luz acinzentada espia por uma fresta da cortina para dentro; ainda deve ser cedo de manhã. Contra a parede, bem na sua frente, está a sua cômoda e também a mesinha de televisão e a estante ela reconhece como sendo suas. No meio do seu quarto, sentada na sua poltrona, percebe os contornos de uma pessoa aparentemente do sexo masculino.
Lentamente, as imagens se transformam em reconhecimento. Ela está no seu quarto, na casa de repouso, onde mora já alguns anos. Mas quem é a pessoa sentada na sua poltrona? Ela levanta a cabeça um pouco a fim de poder ver melhor. O homem está meio reclinado, com o pé direito cruzado sobre a perna esquerda. É uma visão familiar, ainda que um pouco estranha.
 Será o médico? Ou o vigário? Será que ela está tão mal assim? É verdade que já é idosa; em junho celebrou festivamente o dia em que completou 85 anos. Se para ela os sinos tocarem a sua partida deste mundo, o povo da aldeia não vai lamentar: “chegou a uma idade abençoada!”.
Ela aguça o olhar e os seus pensamentos se aceleram um pouco mais. Não, não é o vigário. Isso dá para ver pelos ombros arredondados, pelo pescoço curto e crânio liso. O vigário tem os ossos muito mais salientes e é bem maior do que aquele homem lá na poltrona. Além do mais, o vigário já havia dado a ela a Unção dos Enfermos. Foi no ano passado, quando ele deu os últimos sacramentos a um grupo de idosos. A todos, de uma só vez. Por precaução. É mais uma dessas novidades dentro da Igreja. Nenhum dos seus filhos teve a oportunidade de estar presente.

As vozes melodiosas das crianças ressoam nos seus ouvidos: “Meu bom Jesus, eu vou dormir, pois o dia terminou”. Ela está de volta na sua própria casa, na sala, e está sentada numa cadeira reta. O sol da tarde entra pelo vitral, formando uma pista larga na qual dançam partículas de poeira. No capacho áspero de fibras de coco, os seus filhos se ajoelham em seu redor. “Peço com muito respeito e amor, meu bom Jesus, abençoa-me...”, rezam, com as mãos postas e os olhos fechados, a oração da noite que ela lhes ensinou. O pequeno Fredy está sentado no seu colo. Ela tenta juntar as mãozinhas dele, mas não é fácil entrelaçar aqueles dedinhos espessos. “Amém,” ele diz com cara de safado e tenta soltar-se das mãos de sua mãe. Os outros filhos, ajoelhados aos seus pés e apoiando-se no seu colo, sorriem e espiam por entre os cílios. “Abençoa também os meus queridos pais e todos que eu amo.” E ela ajuda: “Meu bom Jesus, amparado por Ti eu vou dormir.” “Amém,” eles gritam em coro, e esfregam as mãos sobre os joelhos doloridos, onde o capacho está impresso. “Todo mundo fazer xixi e brucutu para cama!” “Posso beber um pouco de água?” “Eu também!” “Também estou com sede!” Quando, finalmente, todos estão deitados, ela ainda faz uma ronda pelas camas, Ajeita um cobertor aqui, endireita um lençol ali. Molha os dedos na piazinha de água benta pendurada no meio do sótão, traça uma cruz na testa lisa de cada um dos seus filhos, repetindo com cada gesto as palavras: “Boa noite, durma bem, até amanhã!”

Amanhã já não importa mais. Umedecendo o seu polegar na píxide dourada com o óleo da extrema-unção, o pároco passara por seu rebanho. Fez o sinal de cruz na sua testa, nos seus lábios e nas mãos. Todos os seus pecados foram-lhe perdoados: pensamentos errados, palavras raivosas e também as tapas dadas nos seus filhos. Com cuidado apalpou a mão que, sem força, estava estendida ao lado do seu corpo. Muitas vezes ela tinha se machucado.
Não, não é o pároco que está sentado ali. Será que é o médico? Podia ser o médico mais velho! Não é aquele médico novinho, pois não se parece com ele. Aliás, esse nem teria coragem para vir. Esse foi despachado por sua filha mais velha. “Ele não vale nada”, dissera Helena. “É um charlatão, que tenta ganhar dinheiro com as pílulas que prescreve. Como é que ele pode dar tantos remédios a uma pessoa idosa?” Helena tinha razão. Ela quase ficou desidratada de tantos diuréticos que ele prescrevia. Dia e noite, tinha que ir ao banheiro. Faltava-lhe o sono da noite e, por fim, cambaleava pelo quarto, não podendo aguentar-se nas pernas.

Acontecera no dia da Páscoa: bem na entrada da capela ela caiu. Só voltou a si quando estava no hospital. Durante seis semanas a mantiveram ali, com o braço esquerdo esticado num aparelho de pesos e cabos de aço. Não adiantou nada! O cotovelo não curou. Desvalida voltou para a casa de repouso: o braço inchado como se fosse uma raiz grossa duma árvore, o cotovelo da grossura do joelho e os dedos inchados pela retenção de líquido. Agora está totalmente dependente. Até a própria calcinha outros têm que colocar. Não, o médico novinho não vai sentar numa cadeira perto da cama dela. Continua...


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