A VISITA
Parte 1
Cornélia abre os olhos e, meio
atordoada, avista o branco de um teto, enquanto emerge da escuridão profunda da
inconsciência. Pouco a pouco, os seus pensamentos começam a se formar: Onde
estou? Onde está
Adriano? Um pânico toma conta dela: Adriano! A
sua boca se abre sem emitir som algum. Ela tenta estender a mão para o lado
esquerdo da cama onde Adriano costuma dormir. Uma dor dilacerante faz com que aborte a
tentativa. Ah, sim! Agora ela se lembra. O braço. Ela machucou o cotovelo. É mais fácil mexer o braço direito e, hesitante, sua mão vai
à procura de alguma coisa. Os seus dedos deslizam sobre uma estreita faixa de
algodão, além da beirada dura da cama até que percebem o frio do papel de
parede. Ela se dá conta que está numa cama estreita, uma cama individual. Em
lugar nenhum, sente calor humano; nenhum sinal dos braços e pernas fortes do
Adriano.
Cornélia sente um calafrio; os
seus lábios estão ressecados e pequenas gotas de suor frio brilham na sua testa.
Ela acordou por causa de uma dor apertando o seu peito. Cuidadosamente, inspira e expira. O seu olhar divaga pelo quarto. Ela se encontra num quarto
pequeno com uma janela apenas. Uma luz acinzentada espia por uma fresta da cortina
para dentro; ainda deve ser cedo de manhã. Contra a parede, bem na sua frente,
está a sua cômoda e também a mesinha de televisão e a estante ela reconhece
como sendo suas. No meio do seu quarto, sentada na sua poltrona, percebe os
contornos de uma pessoa aparentemente do sexo masculino.
Lentamente, as imagens se transformam
em reconhecimento. Ela está no seu quarto, na casa de repouso, onde mora já
alguns anos. Mas quem é a pessoa sentada na sua poltrona? Ela levanta a cabeça
um pouco a fim de poder ver melhor. O homem está meio reclinado, com o pé
direito cruzado sobre a perna esquerda. É uma visão familiar, ainda que um
pouco estranha.
Será o médico? Ou o vigário? Será que ela está tão mal
assim? É verdade que já é idosa; em junho
celebrou festivamente o dia em que completou 85 anos. Se para ela os sinos
tocarem a sua partida deste mundo, o povo da aldeia não vai lamentar: “chegou a
uma idade abençoada!”.
Ela aguça o olhar e os seus
pensamentos se aceleram um pouco mais. Não, não é o vigário. Isso dá para ver
pelos ombros arredondados, pelo pescoço curto e crânio liso. O vigário tem os
ossos muito mais salientes e é bem maior do que aquele homem lá na poltrona.
Além do mais, o vigário já havia dado a ela a Unção dos Enfermos. Foi no ano
passado, quando ele deu os últimos sacramentos a um grupo de idosos. A todos, de uma só vez. Por
precaução. É mais uma dessas novidades dentro
da Igreja. Nenhum dos seus filhos teve a oportunidade de estar presente.
As vozes melodiosas
das crianças ressoam nos seus ouvidos: “Meu bom Jesus, eu vou dormir, pois o
dia terminou”. Ela está de volta na sua própria casa, na sala, e está sentada
numa cadeira reta. O sol da tarde entra pelo vitral, formando uma pista larga
na qual dançam partículas de poeira. No capacho áspero de fibras de coco, os
seus filhos se ajoelham em seu redor. “Peço com muito respeito e amor, meu bom
Jesus, abençoa-me...”, rezam, com as mãos postas e os olhos fechados, a oração
da noite que ela lhes ensinou. O pequeno Fredy está sentado no seu colo. Ela
tenta juntar as mãozinhas dele, mas não é fácil entrelaçar aqueles dedinhos espessos.
“Amém,” ele diz com cara de safado e tenta soltar-se das mãos de sua mãe. Os
outros filhos, ajoelhados aos seus pés e apoiando-se no seu colo, sorriem e
espiam por entre os cílios. “Abençoa também os meus queridos pais e todos que
eu amo.” E ela ajuda: “Meu bom Jesus, amparado por Ti eu vou dormir.” “Amém,”
eles gritam em coro, e esfregam as mãos sobre os joelhos doloridos, onde o
capacho está impresso. “Todo mundo fazer xixi e brucutu para cama!” “Posso
beber um pouco de água?” “Eu também!” “Também estou com sede!” Quando,
finalmente, todos estão deitados, ela ainda faz uma ronda pelas camas, Ajeita
um cobertor aqui, endireita um lençol ali. Molha os dedos na piazinha de água
benta pendurada no meio do sótão, traça uma cruz na testa lisa de cada um dos
seus filhos, repetindo com cada gesto as palavras: “Boa noite, durma bem, até
amanhã!”
Amanhã já não
importa mais. Umedecendo o seu polegar na píxide dourada com o óleo da
extrema-unção, o pároco passara por seu rebanho. Fez o sinal de cruz na sua
testa, nos seus lábios e nas mãos. Todos os seus pecados foram-lhe perdoados:
pensamentos errados, palavras raivosas e também as tapas dadas nos seus filhos.
Com cuidado apalpou a mão que, sem força, estava estendida ao lado do seu
corpo. Muitas vezes ela tinha se machucado.
Não, não é o pároco que está
sentado ali. Será que é o médico? Podia ser o médico mais velho! Não é aquele
médico novinho, pois não se parece com ele. Aliás, esse nem teria coragem para
vir. Esse foi despachado por sua filha mais velha. “Ele não vale nada”, dissera
Helena. “É um charlatão, que tenta ganhar dinheiro com as pílulas que
prescreve. Como é que ele pode dar tantos remédios a uma pessoa idosa?” Helena
tinha razão. Ela quase ficou desidratada de tantos diuréticos que ele prescrevia.
Dia e noite, tinha que ir ao banheiro. Faltava-lhe o sono da noite e, por fim, cambaleava
pelo quarto, não podendo aguentar-se nas pernas.
Acontecera no
dia da Páscoa: bem na entrada da capela ela caiu. Só voltou a si quando estava no
hospital. Durante seis semanas a mantiveram
ali, com o braço esquerdo esticado num aparelho de pesos e cabos de aço. Não adiantou nada! O cotovelo
não curou. Desvalida voltou para a casa de repouso: o
braço inchado como se fosse uma raiz grossa duma árvore, o cotovelo da grossura do joelho
e os dedos inchados pela retenção de líquido. Agora está totalmente dependente. Até a
própria calcinha outros têm que colocar. Não,
o médico novinho não vai sentar numa cadeira perto da cama dela. Continua...
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