terça-feira, 9 de novembro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - (FINAL)



12 (Final)

Adriana Oliehoek

1954

A doença nem sempre está presente. Só de vez em quando. As meninas andam de braços dados com suas amigas preferidas no pátio da escola e cochicham nos ouvidos umas das outras. Quando pergunto se querem brincar de queimada, elas se recusam e mostram uma cara de desgosto: ‘Não, hoje não estou com vontade’. Elas também não querem participar da aula de ginástica. Ficam sentadas num banco e olham como nós, lá no alto dos espaldares, apoiando em um pé e segurando com uma mão, descrevemos círculos cada vez maiores no espaço com a perna e o braço que estão livres.
   Eu sei que tem a ver com um pano atoalhado que outro dia achei embaixo da cama em que durmo com a minha irmã. O pano estava cheio de manchas escuras e dissipava um cheiro horrível.
   ‘Na próxima vez, ponha isso numa balde com cloro, no quartinho de despejo’, adverte a mamãe à minha irmã. Tanto a minha irmã como eu fazemos uma cara de asco.
   Espero que não seja contagioso, pois não quero adoecer de novo. No último outono, tive pneumonia. Parecia que estavam passando filmes na minha cabeça. Levou três dias para eu reconhecer a sala onde me colocaram com cama e tudo.
   ‘Ainda bem’, disse o médico, ‘que agora temos penicilina com que eu posso curar você. Alguns anos atrás, eu não teria conseguido’. Durante uma semana, eu ganhava todos os dias uma injeção. Durante seis semanas não pude ir à escola. Agora, vou toda a semana ao consultório do nosso médico. Os meus ouvidos sempre estão inflamados. Ele me puxa contra o seu corpo, olha com uma lâmpada no meu ouvido e pinga algumas gotas de óleo. É por causa das minhas amídalas que são muito grandes. Mas eu participo normalmente das aulas de ginástica. 
   Trees tem. Cobie tem. Jannie... E Berti também está tão misteriosa ultimamente. Só a Hannie e eu não temos. Nós somos as mais novas e nunca repetimos de ano. A caminho da escola para a casa, elas conversam e riem tontamente sobre os rapazes da aldeia. Ouço também o nome do meu irmão, Otto. Meio envergonhadas, elas acham que já têm idade suficiente para conseguirem licença dos pais para irem à quermesse noturna.
Falta uma semana para que a quermesse anual e a corrida de cavalos afundem a aldeia numa cacofonia de sons. Ward e o Jaap estão ansiosos. Eles brincam de corrida de cavalo com bolinhas de gude que têm os nomes de cavalos imortais como Princess, Allouez e David O. Todos eles campeões de curta distância.
   ‘É dada a largada e...’, dois a dois os ‘cavalos’ rolam sobre o vinil, acionados pelo declive da casa onde o rodapé é a linha de chegada.
  
As primeiras carruagens já estão chegando na aldeia. Num pasto atrás da igreja, as barracas estão sendo levantadas e os aparelhos de diversão montados.
   ‘O carrossel está quase pronto’, conta Otto durante o jantar. Esta atração está presente todos os anos. O que vier a mais sempre é uma surpresa. Eu adoro o carrossel. Hannie e eu pegamos uma cadeirinha da fileira mais externa e aumentamos a aceleração centrífuga, empurrando-nos mutuamente. As correntes que seguram as nossas cadeirinhas se esticam e voamos com cabelos esvoaçados por cima dos visitantes da quermesse. ‘A roda-gigante também voltou’, o Otto continua o seu relatório.
   ‘Viva!’ A minha atração favorita voltou depois de dois anos de ausência’. 
   ‘Há também uma tenda com mulheres-cobras e malabaristas.’
   ‘Eu vi quando estavam treinando’, diz Dirk. ‘Aquelas moças parecem de borracha. Elas colocam as duas pernas no pescoço’.
Juntamente com a Hannie, vagueio entre as barracas com sorvetes, algodão doce, bolos, enguias defumadas e arenques.
   ‘Prêmio na certa! Prêmio na certa!’ Gritam os barraqueiros e balançam um feixe de cordas. Outros oferecem bolas de pano para derrubar latas de conserva empilhadas numa tábua dentro da barraca. Cinco bolas por dez centavos. A minha mão conta as moedas no bolso da minha saia. A mamãe nós dá todos os dias seis moedas de dez centavos.
   Prazerosamente chupamos o pirulito de sal amoníaco. A ponta porosa do doce causa comichão na minha língua: estranho, mas gostoso. Admiradas olhamos para os braços musculosos dos homens que desafiam uns aos outros em atrações de demonstração de força. Mais longe do que isso, o nosso interesse por homens ainda não vai.
   Ao lado da pista de corrida de cavalos, a Hannie e eu damos gritos de incentivo a nossos cavalos favoritos: ‘Vamos, Gleide! Corra, Hannover!’
   Quando, no fim do terceiro dia da quermesse, eu procuro um lugarzinho para fazer xixi sem ser vista, eu surpreendo o Otto com a Trees atrás da barraca de um vendedor de doces. Otto enfia a língua na boca da Trees, enquanto a sua mão mexe nervosamente debaixo da saia dela.  
 São minhas primeiras férias de verão sem a minha prima Lena. Se não preciso tomar conta dos meus irmãozinhos menores eu vou treinar. Agora eu sei o que quero: dançar no Balé Nacional. Quero ser uma prima-dona igual à Anna Pavlova. Se os meus pais não tiverem condições de pagar a escola de balé, eu posso acompanhar o circo e trabalhar como mulher-cobra.
Todos os dias eu treino o spagat frontal. Deixo o meu corpo descer com a perna esquerda esticada para frente e a direita para trás até os fundilhos tocarem o chão. Em seguida, faço a mesma coisa, mas agora com a perna direita para frente e a esquerda para trás. Faço alguns movimentos para cima e para baixo, alongo os músculos das minhas coxas e deixo me cair para frente com as mãos acima da cabeça, representando a morte de um cisne.
   ‘Cuidado para não rasgar’, diz o meu pai quando ele me vê treinando. Eu estudo os passinhos de dança que copiei das mulheres-cobras na quermesse. Exercito a arte de equilibrar-me no batedouro, que propriamente serve para bater os tapetes, e, com os braços abertos, ando sobre a borda da cerca meio apodrecida que faz o limite do nosso terreno com o do vizinho. Depois das férias, voltando para a escola, percorro grandes distâncias praticando saltos giratórios. Com orgulho mostro a Hannie e Trees como consigo fazer um salto giratório lateral, num movimento fluido.
 Todos esses exercícios endurecem os meus músculos. Também em torno dos meus mamilos. Dois caroços desfiguram o meu corpo esbelto e bonito. Eles tremem, sacodem e atrapalham quando corro ou faço os meus exercícios.
   ‘Que coisa mais feia’, diz a minha irmã. ‘Mãe, a senhora tem que comprar um sutiã para ela’. O que ela tem a ver com o meu corpo. Só porque ela tem cinco anos a mais ela pensa que pode mandar em mim. Por que ela não cuida dela mesma e aprende a levantar da cama na hora? No mínimo três vezes por semana, o ônibus fica esperando a minha irmã na frente da nossa casa. Ela enfia as meias na bolsa e com um pedaço de pão nas mãos ela corre para o ônibus para ir trabalhar. Quase todos os motoristas são amiguinhos dela e ficam caídos por causa do rostinho bonito dela.
   A mim ela não engana. Às vezes, sinto ódio dela, como na primavera passada. Só para me chatear – ela sabe que eu gosto muito da nossa gata – ela enfiou o pé debaixo da barriga da mesma, a levantou e chutou o bichinho do telhado do quarto de despejo. Ela riu e disse: ‘Não acontece nada! Um gato sempre cai de quatro’.  Mas, no dia seguinte, nasceram seis gatinhos sem pêlo e mortos. Só porque a minha mãe quis escutar essa menina chata, tenho que usar agora um sutiã. Eu me envergonho de andar com esses paninhos de algodão que apertam e roçam a minha pele. Não quero ter seios. Não quero que os rapazes falem de mim. Sou ainda uma menina.
Certo dia, ao fazer os meus exercícios, sinto algo de pegajoso na minha calcinha. Vejo uma mancha vermelho-escura. Por um momento penso no aviso do meu pai, mas, quase ao mesmo tempo, eu sabia o que era: estou com aquilo! Primeiro um sutiã e agora ‘aquilo’! Meu Deus, o que está acontecendo? Já não posso mais confiar no meu corpo. Está crescendo cabelo onde eu não quero e eu sangro sem me ferir. Afinal, eu sou dona de mim mesma ou não?
   Será que há coisas e pessoas que podem interferir na minha vida sem me consultar? E o vigário tem o direito de dizer o que ele falou outro dia para a minha mãe? Ele veio queixar-se sobre a minha irmã. Ela tinha transgredido as suas regras e fora à aula de dança sem ter dezoito anos. Foi numa segunda-feira que ele veio e eu estava ajudando a minha mãe torcendo as roupas que ela tinha lavado. 
   ‘E essa menina aí’, disse ele apontando para mim, ‘é bom segurar para a senhora mesma’.
O que ele quer dizer com isso? Então, as pessoas não são donas de si mesmas?  Será que a minha mãe tem razão quando ela diz: ‘Você não é dona nem do seu próprio nariz’.
 Pego uma calcinha limpa do armário e a suja enfio no saco de roupas velhas e rasgadas que está no quartinho de despejo. Não quero que alguém saiba que estou com ‘aquilo’. Mas no dia seguinte ‘aquilo’ ainda está aí. O outro dia também. E mais um dia. Já peguei a minha última calcinha limpa e ‘aquilo’ não vai embora. Humilhada, abandonada por meu próprio corpo, conto tudo à minha mãe. Ela me leva para o sótão, que é o nosso dormitório. Ela coloca uma cinta na minha barriga e mostra como devo fixar, com um pequeno alfinete de segurança, um pano atoalhado entre as minhas pernas.
   ‘Você virou moça agora’, diz ela.
   Algumas semanas depois, na escola, tenho aquilo de novo. A minha barriga dói. Peço licença para ir ao banheiro e fujo para casa. Deito na cama dos meus pais e observo a minha mãe que está passando a roupa. Cólicas lancinantes fazem o meu abdômen endurecer.
   ‘Não é nada grave’, diz a mamãe, ‘faz parte’.
         Corro até o banheiro e de volta para a cama. ‘Não quero isso! Não quero isso!’, grito para ela.

'Acho que vem vindo uma contração'.
   'Uma contração? Por favor, senhora, faça força’, diz o médico. Respiro com dificuldade. Inspiro profundamente e aspiro todo o oxigênio do universo.
   'Sim', diz o médico, 'continue fazendo força! Aguente firme!'
   'Ótimo! Maravilhoso!'
   'Enfermeira, o aparelho está ligado, está?’
   'Lá vem, lá vem!'
   'Muito bem, senhora, vá em frente!'
   'Óóóh...', suspira uma amiga.
   'Formidável! Ótimo! Aguente mais um pouco'.
   'Desligue o vácuo, enfermeira!’
   'Empurre mais um pouco, senhora. Devagar, agora!'.
   'Isso! Mais um pouquinho'.
   'Falta pouco!'
   'Isso...!'
   Com sons úmidos, a criança se liberta do meu ventre. O médico a levanta entre as minhas pernas.
   'Um menino!', eu grito.
   'Isso mesmo', dizem as minhas amigas.
   'Que lindo! Que coisinha mais fofa, que belezoca...!
   Berrando, o meu filho dilacera o silêncio. Ele procura ar. Enche os seus pulmões com oxigênio: inspira, expira, respira...

Tenho quarenta anos.


Epílogo
O menino que acaba de nascer na história da Kala Kala, hoje é doutor em informática, trabalha numa universidade em Boston, Estados Unidos, e completou ontem 29 anos.
Parabéns, Frans Adriaan, que teve a honra de ser o protagonista da história da sua mãe.
Parabéns, Adriana, minha irmã, e obrigado por compartilhar conosco seus sentimentos relacionados com vida e morte.
André Oliehoek

2 comentários:

  1. Tio, parabéns pela tradução e parabéns à sua irmã pela bela história. Gostei muito. Muito bonitos os momentos em que ela narra seus devaneios existencialistas de infância (será que realmente somos?; e se somos, de quem somos?, de nós mesmos?), sempre com aquela linguagem muito próxima da infantil, no que se refera à simplicidade. E não seria ótimo se nós olhassemos para o mundo com os olhos de uma criança por toda a nossa vida, olhos de quem vê muita beleza em encarar os arredores com cores diversas de pedaços de vidro?
    Grande abraço!

    Luciano Carneiro

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  2. Realmente, Luciano, ver o mundo com os olhos de uma criança. Que tarefa difícil!

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