sábado, 23 de outubro de 2010

KALA KALA (O Pássaro que voa...) - 11



11

Adriana Oliehoek

A carruagem puxada por dois cavalos pretos para na minha frente. Eu entro e devagar as rodas se põem em movimento. Ela me conduz ao hospital, ao mortuário. Aos meus pés, num caixão, está o meu irmão Jaap. Totalmente imóvel. O seu rosto está branco. Madeixas úmidas colam na sua testa. Desajeitadamente, tentaram limpar os vestígios de sangue.
   ‘Não dá para ver muita coisa’, diz o enfermeiro que tirou o caixão da câmara frigorífica: ‘Geralmente o estrago é bem maior’.
   Eu me inclino e quero pegá-lo nos meus braços. Aquecê-lo. Tirá-lo deste ambiente gélido. O enfermeiro me impede: ‘Não, não toque nele. O corpo ainda não foi liberado. Vão fazer obdução. Entende?’
   Obdução? Estranhando a palavra, procuro prestar atenção a outras palavras obscuras que ele deve ter encontrado no seu curso de enfermagem. Sem me opor, deixo o Jaap onde está.

1953

A minha prima Lena gosta de estudar. Ela é uma menina inteligente. O diretor da pequena escola da aldeia cuidou para que ela pudesse estudar no ensino médio. Terminando o médio, ela pode continuar a estudar para professora. Meu tio e a minha tia só suspiraram: ‘Quem vai pagar isso?’
   As freiras na minha escola não encaminham ninguém. Depois do sexto ano do ensino fundamental, simplesmente passei para o sétimo. Isso é comum na nossa escola. A tarefa mais importante para a mulher é o lar. Portanto, eu aprendo a cozinhar, costurar e fazer tricô. Durante vários minutos fico na fila em frente da mesa da irmã professora para mostrar-lhe uma costura pespontada. Quando é aprovada, posso continuar. Os meus pudins sempre saem errados. Sempre murcham. Depois da aula, tenho que comer os meus próprios pudins, mas não gosto de pudim. Num momento de distração por parte da irmã professora, ponho tudo num guardanapo que enfio no bolso do avental e, mais tarde, o resultado da minha arte culinária vai para o vaso sanitário. Certo dia, visto-me de coragem e vou falar com a irmã Brigita, a diretora da escola feminina.

Seis anos antes, ela me buscou com mais cinco outras crianças no jardim da infância, onde eu brincava com argila, cantava canções bonitas e rezava por nossos soldados na Indonésia. Ela nos leva para o primeiro ano do Ensino Fundamental e anda com passinhos rápidos na nossa frente sobre a trilha que une o Jardim da Infância com o prédio do Ensino Fundamental. Os seus tornozelos finos escondidos em meias pretas aparecem, a cada passo, por um instante por debaixo do seu hábito preto. Na metade do caminho, ela se vira e olha com um sorriso para nós, enquanto o tecido fino do seu véu esvoaça no seu rosto. Durante um momento, eu penso que um anjo desceu do céu, na verdade um que é vestido de preto, mas isso fortalece o meu pensamento que, além de homens e mulheres, ainda existe uma terceira categoria: dos que não precisam fazer necessidades fisiológicas.
   Enquanto eu fico todos os dias pulando na minha carteira, com as pernas apertadas e um dedo levantado, aguardando a licença tão esperada, nunca vejo uma freira entrar ou sair do toalete. Elas parecem estar inegavelmente dispensadas da necessidade humilhante de ter que abaixar a calça e de defecar, enquanto eu, atacada de cólicas intestinais, cada vez de novo sou obrigada a essa caminhada vergonhosa até o banheiro. Lá, desesperada, olho em volta e vejo as manchas marrons na parede: de novo não tem papel higiênico!

A irmã Brigita está sentada à sua mesinha na sala em que ela dá aula às duas últimas turmas do ensino fundamental. Já passou das 15.30 horas e as carteiras diante dela estão vazias. Devido à minha timidez, o meu rosto queima quando resolvo abrir a boca para perguntar: ‘Será que eu ainda posso ir para o ensino médio’?
   No silêncio que segue, quase ouço cair as partículas de poeira que volteiam na luz solar da tarde. Durante segundos – ou serão minutos –observo o olhar pensativo na sua face serena. Finalmente, os seus lábios começam a se mover e a sua boca se abre: ‘Não, não dá mais’ soa a sua voz suave, mas decidida. Eu aceito a minha sina. É a minha própria culpa. As matrículas para o ensino médio devem ser feitas no final do sexto ano, assim como Lena fez. Eu havia optado para fazer mais dois anos no ensino fundamental para aprender a arte de cozinhar e costurar.

O ano de 1953 é um ano desastroso. No mês de janeiro, a minha mãe ausenta-se muitas vezes de casa para ficar ao lado do meu avô, que está à beira da morte. De manhã, ela volta cansada: ‘Não, ainda não.’ Sussurrando ela conversa com meu pai, com a vizinha e com a empregada. Um câncer rói o estômago do meu avô. O homem que, quando criança, queria ser professor, mas que a sua vida inteira ganhou o pão para a sua esposa e os oito filhos como empregado numa fazenda, não quer morrer. Só mesmo, quando o seu rosto quase se afundou nos seus olhos grandes, ele desiste da luta. O vovô não surpreenderá mais ninguém com seus debates políticos e, no réveillon, ele não levantará mais da sua cadeira às cinco para a meia noite com as palavras: ‘Já está tarde, vou dormir’.
O vovô nunca mais dormirá nem acordará. Nem a terrível tempestade no início de fevereiro o perturbará. Eu, sim, acordo. O vento uiva e esbraveja em redor da nossa velha casa. Furioso, ele sacode o telhado acima da minha cabeça. As vigas de madeira gemem e as telhas despencam com grande estrondo no chão, ao lado da casa. De repente, a silhueta da minha mãe surge na porta. Por causa do barulho não ouvi que ela havia subido para o sótão. ‘O tempo está muito feio’, diz ela, ‘vista algo quente e vamos descer’.
   A sala está fria. O carvão na estufa está praticamente apagado. Eu tremo de frio, enrolada no meu casaco de frio que vesti por cima da minha camisola. Os meus irmãos com rostos lívidos olham sonolentos para frente. Os menores ficaram nas suas camas. O meu irmão mais velho saiu com o meu pai para ajudar no reforço dos diques que cercam a aldeia e que ameaçam romper-se pelas águas enfurecidas.
   A minha mãe benze a casa. Com um galho do Domingo de Ramos do ano anterior, ela joga água benta em forma de cruz em todos os cantos de cada cômodo. Em seguida, se ajoelha no duro tapete de fibras de coco. Juntos rezamos um terço e pedimos a todos os santos do céu para que nos protejam. Já está clareando, quando a tempestade começa a diminuir em intensidade. No dia seguinte, ouvimos pelo rádio que o mar rompeu as dunas perto de Scheveningen. O pôlder em que nós moramos fica a seis metros abaixo do nível do mar. Felizmente, o dique que cerca a nossa aldeia resistiu e conseguimos escapar ilesos do maremoto. Mais tarde, os jornais e revistas semanais mostram o estrago que foi feito em outros lugares. Casas inundadas, cadáveres de vacas e cavalos boiando, crianças com cabelos molhados recebendo roupas secas e pessoas olhando diante de si com olhares vazios. Mais de mil e quinhentos pessoas morreram afogados.
   No início de março, há uma trégua na guerra fria. Morre o Stalin. O vovô já não precisa estar com medo. O perigo vermelho que ameaça a partir da Rússia a paz do Ocidente está escondido atrás do papel de parede da nossa casa.
O meu pai protegeu as paredes da sala contra a umidade com sacos de juta, nos quais ele colou jornais velhos. Em um desses jornais está a última foto de Stalin. Com uma mistura de temor e admiração, despeço-me desse tirano. Ele está com a cabeça para baixo e suas pernas apontam para o forro. O que chama a minha atenção são as suas mãos que não estão postas, assim como um cristão fica no caixão, mas estão ao longo do corpo. O seu bigode espesso ainda está preto, mas seus olhos estão fechados. Stalin está morto. Aliviada vejo como o meu pai cola uma faixa de papel de parede por cima dele.

O mês de dezembro está chegando. Juntamente com a minha mãe, faço as compras para a festa de São Nicolau na cidade vizinha. No centro, encontramos a nossa avó com a minha prima Lena. A minha tia está com uma hérnia de disco e tem que ficar de cama durante algumas semanas. Por isso, a avó e a Lena fazem as compras este ano.
   O primeiro trimestre está terminando e a Lena receberá um boletim bonito antes das férias do Natal. Como sempre quando não nos vimos algum tempo, ela reage timidamente à minha saudação. A sua imagem – uma figura fina vestida com um casaco de gabardina azul-escuro esperando na luz de um poste pelo ônibus que não deve tardar – continua fixada na minha retina. 
   Um dia depois do Natal, a Lena quer ir com o pai e o irmão mais velho para uma festa de família. A minha tia acamada opõe-se a essa ideia: ‘Filha, estou precisando de você em casa’!
   A Lena chora e bate o pé. A cor dos seus olhos muda para cinza-escura com verde: ‘Vocês não me dão licença para nada! Sempre tenho que ajudar! Na horta! Em casa! Fazer compras! Quero sair uma vez com o meu pai!
   A minha tia suspira: ‘Está bom, filha, pode ir com seu pai’. 
É noite. Para os menores, a festa do Natal acabou. A minha mãe fechou o livro do qual ela lera para eles e as crianças sopraram as velinhas junto ao presépio, colocando, cuidadosamente, uma mãozinha atrás da chama. Na mesa, no meio da sala debaixo da grande lâmpada, três menininhos esperam sentados, vestindo apenas uma cueca e uma camiseta, para que a mamãe os termine de preparar para a noite. A porta da sala se abre e a vizinha entra. Alguém telefonou para nós; um automobilista embriagado atropelou o meu tio e os dois filhos.
Ela está vestida com o seu melhor vestido, amarelo suave, com florzinhas brancas e rufos no pescoço. As mangas fofas deixam grande parte dos braços descoberta. As suas mãos finas estão postas sobre o seu corpo. A minha prima Lena transformou-se numa princesa de fada. Ela está, como Branca de Neve dos sete anões, imóvel e branca sob o vidro do caixão de carvalho branco. Temos doze anos e ainda não fomos beijados por algum rapaz. Coloco o meu buquê de frésias aos seus pés e espero pelo príncipe que deve vir logo para beijá-la. O pedacinho da maçã envenenada saltará da sua garganta, ela acordará, pegará a sua pasta e irá para a escola. (Continua)

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